Somente nos casos de maior repercussão em agosto, as polícias brasileiras foram responsáveis por pelo menos 64 mortes, em uma onda de violência que atinge, principalmente a Bahia, um dos estados com maior letalidade policial em todo o país, além de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso.
O deputado estadual Sargento Rodrigues (PL), que representa a corporação no Legislativo mineiro desde 1999, avalia a letalidade policial, como resultado da cultura brasileira de “desrespeito à lei” e responsabiliza os “criminosos”. Para ele, a pessoa que atira contra a polícia não está preocupada com a pena, porque sabe que no Brasil ela é branda.
Os casos recentes de mortes nessas ações policiais acenderam alerta no governo federal e também no Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda), já que parte considerável das vítimas integra essa parcela da população. Somente ano passado, 83% dos mortos no Brasil pela polícia eram negros e 52,9% tinham entre 12 e 24 anos.
Caso, por exemplo, de Guilherme Gomes da Silva, de 17 anos, morto pela PM da Bahia, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, em junho passado. Ou do adolescente Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, baleado com cinco tiros por policiais na Cidade de Deus, Zona Oeste da capital fluminense, durante operação no começo de agosto. Na semana passada, os policiais foram indiciados por fraude, acusados de plantar uma arma junto ao corpo da vítima.
O Conanda chegou a propor a adoção de câmeras por todas as polícias e uma revisão da formação profissional de agentes de segurança como medidas para reduzir os casos de letalidade policial. Estudo realizado pelo FBSP em parceria com o Unicef sobre os resultados de uso de câmeras por policiais em São Paulo, estado pioneiro nessa utilização, registrou, entre 2021 e 2022, queda de 63,7% da letalidade geral no estado e de 76,2% nos batalhões em que as câmeras passaram a ser utilizadas. Mas a adoção dessa tecnologia para barrar a letalidade não é consenso entre especialistas da área de segurança.
Para Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), para que a câmera no uniforme da PM produza resultados “para além do imediato, é preciso criar um programa de controle e desempenho da ação policial, voltado para a redução da letalidade e da vitimização da polícia”.
A pesquisadora do tema aponta ações fundamentais, como a criação de protocolos atualizados e de conhecimento público, controle do uso individual de armamento e do gasto de munição. Lista ainda a apresentação de critérios de desempenho apoiados nos protocolos, programa de capacitação continuada no uso potencial e concreto de força, por tipo de armamento menos e mais letal, além de controle de stress da ação policial e capacidade de armazenamento e registro das câmeras com certificação da Defensoria e Ministério Público.
“Sem isso, ficaremos apenas com os resultados iniciais das câmeras e depois haverá acomodação, pois atrás de um equipamento que vê tem um olho que decide o que pode e o que não pode ser visto”, avalia. Segundo ela, esse controle é fundamental e foi adotado por outros países que também apostaram nas câmeras.
Estudo mapeia a mortalidade em Minas
Em Minas Gerais, quase 1.300 pessoas perderam a vida na última década em decorrência de intervenções policiais. Segundo estudo feito sobre seis anos de registros policiais, na maioria dos casos os agentes apontam ação em legítima defesa para “repelir injusta agressão”. Essa justificativa aparece em 86% dos boletins de ocorrência em que foram registradas vítimas civis em decorrência da atuação das forças de segurança, segundo levantamento do Núcleo de Estudos em Segurança Pública (Nesp) da Fundação João Pinheiro.
Em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais, por meio da Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos (CAO-DH), pesquisadores do Nesp analisaram durante 18 meses 3.605 registros de ocorrências, relativos ao período de 2013 a 2018, sobre mortos e feridos em decorrência de intervenções que tiveram policiais como vítimas ou autores.
Além do perfil detalhado das vítimas, o estudo aponta características predominantes entre elas. Na maioria dos casos (90%), as mortes foram causadas por PMs, os mortos eram homens (97%), tinham entre 12 e 29 anos (67%) e eram pretos ou pardos (68,4%).
Na maior parte das ocorrências (88%), os agentes envolvidos estavam em serviço e as mortes (73,7%) aconteceram fora de vilas e favelas, em vias públicas (77,9%), durante a noite ou madrugada (62%) e em ações de rotina (55%), e não em operações especiais.
Para Luiz Felipe Zilli, um dos pesquisadores do Nesp, os dados indicam que as mortes causadas pela polícia em Minas são decorrentes de ações de patrulhamento, e não de operações especiais em comunidades, como as que rotineiramente deixam mortos no Rio de Janeiro, por exemplo.
A intenção do estudo, segundo ele, é transpor em dados a atuação das forças de segurança, para que o estado possa agir para coibir a violência policial, uma das menores em termos nacionais, mas ainda alta para parâmetros internacionais.
O promotor que coordena o CAO-DH, Francisco Angelo, disse que esse raio-x, “quantitativo e qualitativo” da atuação policial é importante para que tanto o MP quanto as forças de segurança e o estado possam atuar para coibir a letalidade policial, assim como a vitimização de policiais. “O ideal é que não haja mortes de nenhum lado”, destaca o promotor.
Para ele, essa letalidade pode cair com o uso das câmeras pela PM, projeto-piloto adotado pelo estado em janeiro deste ano e que é acompanhado pelo CAO-DH. Porém, ele pondera que a tecnologia é importante, mas não milagrosa.
É preciso que haja investigação “pronta e justa” por órgão independente, para saber se cada morte ocorreu em decorrência de confronto ou não. Segundo ele, respeitando a independência funcional dos promotores, o CAO-DH expediu orientações para apuração dos casos de letalidade policial.
Essa é uma das maiores dificuldades enfrentadas para esclarecer os casos, pois, como revelam os números, muitas vezes a cena do crime é alterada, os PMs envolvidos são recolhidos em seus batalhões, as armas não são entregues de pronto para a perícia e os casos não raro chegam ao MP tardiamente. “Esse é um dos grandes desafios”, afirma o promotor.
Polícia militar
O deputado estadual Sargento Rodrigues (PL), que representa a corporação no Legislativo mineiro desde 1999, avalia a letalidade policial, como resultado da cultura brasileira de “desrespeito à lei” e responsabiliza os “criminosos”. Para ele, a pessoa que atira contra a polícia não está preocupada com a pena, porque sabe que no Brasil ela é branda.
“Então, o criminoso calcula”, afirma o deputado, que defende que as penas, principalmente para crimes contra a vida, sejam “certas, céleres e severas”. “Outra coisa é a facilidade com que criminosos adquirem armas”, destaca o parlamentar.
Procurada pela reportagem para comentar os dados, a PM, por meio de sua assessoria, afirmou que a corporação “possui uma das menores letalidades policiais entre os estados da Federação, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública”. “O resultado demonstra que ações com uso de força letal pela corporação são exceções, uma vez que a instituição mantém um investimento contínuo do seu efetivo quanto ao uso diferenciado da força.”
Entrevista / Robson Sávio - Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos
“Brasil tem uma das polícias mais violentas do mundo”
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Robson Sávio, professor universitário, afirma que o Brasil tem uma das “polícias mais violentas e de maior letalidade do mundo”. Problema grave, destaca, que pode ser comparado a uma “verdadeira política de extermínio” da população jovem, negra e periférica, principal vítima das ações policiais no Brasil. Nesta entrevista ao Estado de Minas, ele aponta caminhos e cobra responsabilidade das instituições públicas e uma mudança cultural da sociedade e das próprias forças de segurança para combater o problema crescente só cresce no país, segundo ele sob a omissão dos governos, que não criam mecanismos de controle, do Ministério Público, do Judiciário e do Legislativo.
Como combater a letalidade policial no Brasil?
É uma bobagem dizer que oferecer cursos de direitos humanos ou treinamento será suficiente para resolver o problema. Eles são necessários, mas não suficientes. É preciso uma mudança cultural nas forças policiais, que na verdade protegem seus integrantes violentos para preservar a instituição. É necessário mudar também a sociedade, que não somente aplaude, mas na maioria das vezes ratifica a letalidade policial. São necessários mecanismos de controle externo eficientes. O Ministério Público não controla as polícias, não obstante a Constituição Federal determinar, e o Poder Judiciário é conivente com todas as arbitrariedades policiais, tornando os processos morosos e sem sentença e punição definitiva.
O senhor avalia que há uma sequência de omissões?
Há uma rede e uma estrutura que na verdade ratificam a violência e a letalidade policial, desde a omissão dos órgãos de controle, a conivência no Judiciário, passando por uma cultura social que é vingativa e de violência e que aplaude esse tipo de ação arbitrária. Além das próprias instituições policiais, que protegem mais o patrimônio de quem tem renda, lucro e dinheiro, e a classe média, que tem alto poder de vocalização, do que na verdade provêm segurança. Há também uma omissão do Poder Legislativo, cada vez mais povoado por representações truculentas, sejam de policiais ou de pessoas que gostam desse modelo violento e letal.
Como avaliar dados que apontam a morte sistemática pelas polícias de jovens negros, maior parte das vítimas, segundo as estatísticas?
É uma ação totalmente discricionária dos agentes policiais em relação àqueles que são caracterizados como indesejáveis por parte de segmentos da população brasileira – pretos, pobres, jovens e das favelas, esse é o público que é vítima. Obviamente, há toda uma campanha de criminalização dessas pessoas, como na ideia de que somente essas pessoas são usuárias e os traficantes de droga, quando sabemos, por pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que 80% dos jovens apreendidos por tráfico de drogas são pequenos traficantes e pequenos usuários.
Por que o senhor considera que isso ocorre?
A política de guerras às drogas protege primeiro os grandes produtores, os grandes distribuidores, que são empresários, gente que tem dinheiro. Eles têm a proteção do aparato do Estado nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que são corrompidos e coniventes com esse sistema de produção e distribuição, sempre conectado com outros crimes, como tráfico de armas e de pessoas, lavagem de dinheniro, corrupção ativa e passiva. É uma rede que protege os grandes tubarões e prende os lambaris magrinhos.