A última viagem de Antônio Marcos Silva Melo terminou de forma trágica, na curva do Km 525,4 da Rodovia Fernão Dias (BR-381), na Serra de Igarapé, em Brumadinho, Grande BH. Apenas cinco dias antes, o menino tinha comemorado o aniversário de 5 anos. Se tivesse escapado do acidente, estaria hoje com 20. De sua vida breve, além da memória sofrida dos parentes, ficou apenas o testemunho de uma cruz de metal, agora enferrujada e semiencoberta pela vegetação, ao lado de um pequeno oratório que abriga uma imagem de Nossa Senhora. A singela lembrança fica no alto do mesmo barranco onde sete torcedores do Corinthians morreram, na madrugada do dia 20 do mês passado, no trecho mais perigoso da estrada em Minas Gerais: a Serra de Igarapé.
Lá, o número médio de mortes a cada um dos 15 quilômetros serranos entre Igarapé, Brumadinho, Rio Manso e Itatiaiuçu é mais de 80% superior ao restante da estrada, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de 2020 a julho de 2023 (veja arte). Mesmo com a comoção nacional gerada pela morte dos corintianos que voltavam para São Paulo após a partida contra o Cruzeiro, apelos por soluções para a curva onde bateu o ônibus das vítimas, como a implantação de área de escape, não serão facilmente atendidos por questões geotécnicas, financeiras e ambientais, segundo alertam especialistas ouvidos pelo Estado de Minas. O que significa que os riscos permanecerão por ainda muito tempo para os viajantes.
Seguindo dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de acidentes com mais mortes e feridos de 2020 a 31 de julho deste ano, o EM montou um mapa que mostra os sete pontos mais mortais nos 15 quilômetros da Serra de Igarapé, identificando, com o auxílio de especialistas, caminhoneiros e motoristas, quais os cuidados e providências necessárias para se ter mais segurança nesses locais.
No mapeamento, sete segmentos se destacam por ordem de quantitativo de mortes, feridos e acidentes. O pior no período é o Km 526, em Brumadinho, com 10 óbitos. Como mostrou a reportagem do Estado de Minas, aquele era o segundo ponto mais letal do estado até 2022, perdendo apenas para a BR-251, em Francisco Sá, Norte de Minas.
O Km 525, com três óbitos, era o segundo mais mortal da serra, mas, após a tragédia com os torcedores, chegará ao mesmo patamar do trecho seguinte. Em seguida aparecem o Km 528 (três óbitos), o 519 (1), o 523 (1), o 524 (1) e o 527 (1), segundo as estatísticas da PRF. “Aquela área é um trecho de traçado muito ruim, semelhante ao que vemos em outras serras do Brasil, com descidas fortes e curvas fechadas, seguindo traçados antigos em vez de projetos modernos. Sem falar no volume de tráfego, que é intenso”, afirma o especialista em engenharia de transporte e trânsito Márcio Aguiar.
Para se ter uma ideia do tráfego apontado por ele, a praça de pedágio mais próxima da serra é a de Itatiaiuçu. Até junho de 2023 passaram por lá 3.542.604 de veículos, um fluxo que é 6,5% maior do que o registrado no mesmo período de 2022, quando as cancelas marcaram a passagem de 3.325.622 carros, motos, ônibus e caminhões.
Um mergulho para o perigo
A curva onde morreram os sete torcedores corintianos que seguiam em um ônibus fretado é a 24ª no sentido São Paulo da rodovia, dentro do trecho da Serra de Igarapé (Km 516 ao Km 530). Do alto da chamada Serra da Conquista, que é a passagem mais alta da estrada, a 1.132 metros de altitude, os motoristas encaram um mergulho sinuoso de sete quilômetros e 268 metros de desnível, descida que exige sobretudo do sistema de freios dos veículos. A curva do desastre precisa ser iniciada pelo condutor menos de 100 metros após a que a antecede, contornando um paredão de 80 metros de altura.
O impacto no barranco em que o ônibus bateu primeiro foi tão forte que a porta e parte da roda ficaram enterradas no solo, lançando estrada abaixo o veículo de passageiros, que capotou. Naquele ponto, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) informou que há estudos para a construção de uma área de escape. “Neste momento, não há projetos para a implantação de áreas de escape. No entanto, a Arteris Fernão Dias (concessionária do trecho) está em andamento com os estudos sobre a possibilidade de implantação do dispositivo”, informou a agência reguladora.
Mas não é uma solução fácil. “Uma área de escape precisa ser muito bem planejada, projetada e executada. Precisa ter um espaço para onde o veículo possa sair da curva, como foi feito em Belo Horizonte, no Anel Rodoviário. O local em questão é uma encosta íngreme. Precisa estar em um local visível – a curva fica a menos de 100 metros da anterior – para que o motorista em dificuldade possa optar por utilizá-la”, afirma o especialista em transporte e trânsito Márcio Aguiar.
Como outro dificultador, o terreno onde a pista de escape poderia ser construída não está na faixa de domínio da rodovia. Pertence a uma grande fazenda de Brumadinho, em local de recomposição de área de proteção permanente (APP), o que pode se traduzir em ainda mais obstáculos nos campos ambientais e judiciais.
Desafios demandam engenharia e atenção
A curva do Km 526, em Brumadinho, na sequência do trecho onde morreram os sete torcedores do Corinthians, no Km 525 da Fernão Dias, contabiliza 10 mortes entre 2020 e julho de 2023, segundo as estatísticas da Polícia Rodoviária Federal (PRF). As possíveis soluções de engenharia para o segmento e a redução de acidentes passam pela eliminação da curva, unindo as duas pontas do traçado com uma reta pelo terreno vizinho, ou um viaduto por sobre a mata.
Opções que esbarram exatamente no mesmo problema do segmento anterior, que é a dificuldade em se obter a desapropriação do terreno particular em espaço de reconstituição de área de preservação permanente de Mata Atlântica, sem falar no custo elevado de um viaduto.
Outros dois trechos considerados críticos poderiam ser melhorados geometricamente com a supressão de curvas muito fechadas, como é o caso dos Kms 523 e 524. Contudo, em outros pontos de alto registro de acidentes com mortes, como os Kms 519, 527 e 528, as soluções mais indicadas pelos especialistas e condutores que conhecem o traçado são maior atenção por parte dos motoristas e uma manutenção rigorosa sobre os sistemas dos veículos, sobretudo os freios.
“O motorista é parte fundamental da equação que resulta no acidente. Prova disso é que, se ele falha ou o veículo não tem manutenção ideal, segmentos que não representam perigo acabam sendo locais de acidentes graves”, destaca o especialista em transporte e trânsito Márcio Aguiar.
Nos 15 quilômetros da Serra de Igarapé, entre os Kms 516 e 530, os registros da PRF mostram que a velocidade incompatível do veículo acidentado esteve relacionada a 63% dos desastres. Pista escorregadia e defeitos mecânicos contribuíram para 16% das ocorrências. Já as capotagens como a que ocorreu com o ônibus dos torcedores do Corinthians foram 26% dos registros de tipos de acidentes, seguidas da colisão contra obstáculos – como árvores ou postes – com 21%, e das saídas de pista, respondendo por 16%.
Concessionária administradora da rodovia, a Arteris Fernão Dias não divulgou quais seriam os pontos mais críticos da estrada que administra, na qual cobra pedágio e é teoricamente responsável pela conservação, segurança e obras. “A Arteris conduz diversos estudos alinhados com a ANTT para soluções que aumentem a segurança viária das rodovias brasileiras. A implantação de áreas de escape é uma delas e tem como foco o complemento de segurança em trechos de serra. A Serra de Igarapé, na BR-381/MG, é um dos trechos contemplados pelos estudos.”
A concessionária afirma, ainda, que o local já recebeu melhorias como “reforço de sinalização, com semipórtico com alerta luminoso, placa indicando curva acentuada, placas de contagem regressiva antes da curva, velocidade permitida para veículos leves e pesados, assim como placas indicando a fiscalização eletrônica que se encontra na altura do km 525,4”. Desde 2008, a concessionária afirma ter investido mais de R$ 3,4 bilhões na rodovia federal.
Sobre a fiscalização de ônibus como o dos torcedores, que não tinha autorização de transporte interestadual de passageiros e apresentou vários defeitos, a ANTT informou que “realiza constantemente ações para assegurar a segurança dos passageiros”. “Somente em 2023, até 21 de agosto, foram conduzidas 966 apreensões por transporte clandestino em todo o país. Em todo ano anterior, esse número foi de 1.150.”