O Largo do Rosário é um patrimônio cultural e imaterial de Belo Horizonte. Centenas de belo-horizontinos passam pelo local onde ele ficava, no cruzamento das ruas da Bahia e Timbiras, no Bairro Lourdes, e não fazem ideia que estão sobre um legado histórico da capital mineira, construído antes da BH planejada por Aarão Reis. Com o auxílio da Fundação Municipal de Cultura (FMC) e do Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário, o Sabia Não, Uai! desta semana resgata a história dessa herança mineira.
Patrimônio de resistência, reconhecimento, assistencialismo e pertencimento, o Largo do Rosário era composto pela Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de 1819, um cemitério que ficava ao lado, construído anos antes, em 1811, além de uma comunidade unida em torno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial do Curral del-Rei.
No fim do século 19, os moradores do arraial que daria origem a Belo Horizonte eram predominante negros: 77% dos 5,5 mil moradores do Curral del-Rei, segundo levantamentos da Fundação Municipal de Cultura. Apesar disso, a população não tinha autonomia nas irmandades brancas. As irmandades eram grupos religiosos com ações dentro de sua comunidade e de ajuda a seus integrantes.
Impossibilitados de participar dos espaços religiosos, a população preta se uniu para criar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial de Curral del-Rei. E, em 1807, pediram a Dom João VI, príncipe regente de Portugal na época, autorização para construir uma matriz com uma igreja e um cemitério para se concentrar e manifestar a fé. A requisição foi aprovada, desde que a comunidade investisse seu próprio dinheiro na construção.
Primeiros anos do Largo do Rosário
Em 1811, o cemitério ficou pronto e tinha 60 sepulturas. Segundo o mapa do historiador Abílio Barreiro (1957), a capela em homenagem a Nossa Senhora do Rosário foi inaugurada em 8 de outubro de 1819, dia em que as religiões de matrizes africanas celebram a padroeira. A igreja tinha sua frente voltada para o nascer do sol, na esquina da Timbiras com Bahia, na Região Centro-Sul de BH.
O Largo do Rosário, porém, seria bem mais amplo que o cruzamento dessas ruas em Lourdes, segundo historiadores, possivelmente se expandindo pelas atuais ruas Aimorés, Espírito Santo e a Avenida Álvares Cabral.
Segundo o padre Mauro Luiz da Silva, presidente do Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário, mestre e doutor em ciências sociais e também diretor do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), existe um estudo do arquiteto Thiago Fialho, indicando que o local fica 10 metros abaixo, em frente ao teatro da cidade. A análise usou como referência o material produzido pela Comissão Construtora da Nova Capital e reinterpretou com base nas dimensões contemporâneas.
"O nome Largo do Rosário surgiu porque criou-se uma corrente, uma união de pessoas na região. Muito provavelmente os vizinhos também eram pretos, devotos de Nossa Senhora do Rosário"
Padre Mauro Luiz da Silva, presidente do Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário
A amplitude do Largo do Rosário pode ser explicada pela identificação que a população preta encontrava na irmandade. “O nome Largo do Rosário surgiu porque criou-se uma corrente, uma união de pessoas na região. Muito provavelmente os vizinhos também eram pretos, devotos de Nossa Senhora do Rosário. Então, no entorno da capela formava esse largo, que é uma praça, onde a população mantinha uma vida ativa em comunidade”, explica o padre Mauro Luiz da Silva.
Símbolo de pertencimento
Além de um símbolo de religiosidade, a irmandade tornou-se uma organização que buscava a inclusão e sobrevivência dos seus integrantes. Eles organizavam festas e cultos, providenciavam remédios, alimentos e até buscavam a liberdade de escravizados.
Assim foi até o arraial ser escolhido como a nova capital de Minas Gerais e a comissão construtora chegar aqui em 1894, com um plano republicano. Chefiados por Aarão Reis, a ordem da equipe foi destruir tudo nos limites que hoje conhecemos como Avenida do Contorno.
Soterramento de um legado
Como resultado do planejamento para a construção da cidade, demoliram a capela do Rosário, na virada de 1897 para 1898, e soterraram o cemitério. Os moradores da região foram indenizados, no entanto, o valor não dava condições para que as pessoas comprassem um terreno nos limites da capital organizada.
Para substituir a capela, construíram em 1897, no entroncamento da Avenida Amazonas com as ruas São Paulo e Tamoios, um novo templo. Apesar de ser registrado oficialmente como Igreja do Rosário, é conhecido atualmente como igrejinha Santo Antônio. Porém, essa não era mais ligada à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial de Curral del-Rei.
“Ao construir um novo templo, não levaram em conta os corpos que estavam sepultados, nem a propriedade conquistada independentemente pela irmandade. Assim, ela foi transferida para a Arquidiocese de Belo Horizonte. Os negros perderam além da igreja, o direito de propriedade, referencia identitaria e herança histórica”, afirma o historiador da Diretoria de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de BH, Marco Antônio Silva.
Reparação histórica
Assim, a história da Irmandade dos Homens Pretos, e tudo o que ela representava, quase foi apagada. No entanto, o legado deixado pelos povos que ali viviam foi registrado nos últimos anos pelo Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário.
Atualmente, graças à luta da junta para manter viva a memória da cidade, a região do Largo do Rosário foi registrada como Patrimônio Cultural e Imaterial de Belo Horizonte, por unanimidade, pelo Conselho do Patrimônio, órgão da PBH, em 2022. Com isso, foi colocada uma placa na esquina do quarteirão, onde acredita-se ser o lugar mais próximo e mais marcante, para identificar e para que todos que passem por lá saibam da importância do local.
“Quando o Largo do Rosário recebeu o título de patrimônio cultural foi como se o município estivesse dizendo, em outras palavras, que reconhece o passado, essa história e essa dívida com o povo negro. Uma forma de reparação histórica”, comenta Marco Antonio Silva.
Ainda segundo o historiador, com o procedimento, os cuidados do município com a região são ampliados. Torna-se responsabilidade da PBH divulgar, proteger e respeitar história da cidade e do povo negro que ali habitava, com o objetivo de garantir que essa e as gerações em diante reconheçam.
Outras figuras importantes
Inácio da Costa Pereira é o único membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Arraial del-Rei conhecido. Isso porque ele foi o escrivão da comunidade que assinou um dos documentos enviados à Dom João VI, em 1811. A carta faz parte do acervo do Arquivo Público Mineiro.
"Quando o Largo do Rosário recebeu o título de patrimônio cultural foi como se o município estivesse dizendo, em outras palavras, que reconhece o passado, essa história e essa dívida com o povo negro"
Marco Antônio Silva, historiador da Diretoria de Patrimônio Cultural de BH
Outro nome que se destaca ao contar a história do Largo do Rosário é o do vigário Francisco Martins Dias, um homem negro que chegou ao arraial em 1892 e acabou atuando na transferência para a nova capital. Ele foi o último religioso a fazer uma celebração na Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o primeiro pároco da capital.
Sabia Não, Uai!
O Sabia Não, Uai! mostra de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro.O Sabia Não, Uai! foi um dos projetos brasileiros selecionados para a segunda fase do programa Acelerando Negócios Digitais, do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), programa apoiado pela Meta e desenvolvido em parceria com diversas associações de mídia (Abert, Aner, ANJ, Ajor, Abraji e ABMD) com o objetivo de atender às necessidades e desafios específicos de seus diferentes modelos de negócios.