Jornal Estado de Minas

Vida de professor

Como educadores de comunidades carentes ensinam a equação da superação


Elas nasceram em comunidades de alta vulnerabilidade social, são de cidades e gerações diferentes, mas guardam um traço de união: professoras, não se afastaram, depois de formadas em pedagogia, de regiões carentes de educação, cultura, conhecimento.




 
Flávia nasceu comunidade do Morro Alto, em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, entrou como zeladora na escola municipal do lugar, e hoje é a diretora. Solange, aposentada após quatro décadas de magistério, veio ao mundo na antiga favela do Perrella, na Região Leste de BH, morou em vila em Sabará, também na Grande BH, e depois trabalhou em uma escola na região de Venda Nova, na capital.
 
Nesta reportagem em homenagem à semana dos professores, as duas mineiras narram suas trajetórias, certas de que educadores podem fazer a diferença em ambientes de miséria social. “Já ouvi aluno dizendo que teve a última refeição no dia anterior, na escola”, conta Flávia, enquanto Solange observa que, por ter nascido e vivido em área muito pobre, pôde entender melhor a realidade das crianças e adolescentes com que convivia.

Fidelidade às raízes

A vida pessoal, profissional e afetiva da professora Flávia Ribeiro Lobo Barbosa, de 36 anos, está totalmente ligada à comunidade do Morro Alto, em Vespasiano. Nessa que é considerada uma das áreas de mais alta vulnerabilidade social da Região Metropolitana de Belo Horizonte, ela nasceu, cresceu e vive hoje com o marido e o filho de 10 anos. Sua história é uma declaração de amor às suas origens e um voto de confiança na comunidade que jamais abandonou, e onde, ao longo do tempo, presenciou mudanças positivas sempre por meio da educação.




 
No fim da adolescência, aos 17 anos, quando já estudava pedagogia, Flávia procurou emprego na Escola Municipal Nazinha Conrado Silva, no Morro Alto, onde havia cursado os níveis fundamental e médio. A única ocupação disponível era de zeladora, e ela não titubeou. “Fui trabalhar varrendo chão, lavando piso”, conta a atual diretora do estabelecimento, onde completa 17 anos de serviços prestados.
 
“Certa vez, a então diretora me perguntou se eu cursava pedagogia. Ao ouvir a resposta, ela me disse que, na próxima oportunidade, eu seria aproveitada.” E, desse jeito, a jovem foi secretária, professora (depois de formada), até receber o convite para ser diretora. “Conheço as pessoas, o bairro, a realidade... Enfim, este é meu mundo. Tanto que, ao me casar, continuei morando aqui e fiz questão de que meu filho, Caio Eduardo, estudasse na ‘Nazinha’, como a escola é conhecida.”

Com 546 alunos de 7 a 11 anos, matriculados da primeira à quinta série, a escola com 72 anos de história representa um agente de transformações na região, afirma Flávia. “Amo a educação, e sei que muitos jovens seguiram um bom caminho devido à escola. Há aqueles que perderam a vida para a violência, e muitos têm baixo rendimento escolar não por desinteresse pelos estudos, mas pela falta do que comer”, diz a diretora.




 
Os relatos das crianças e jovens sempre tocaram o coração da professora, desde os tempos em que era zeladora da escola: “Já trabalhando como professora, ouvi de um aluno que sua última refeição havia sido na escola, no dia anterior, e que por isso tinha ido mal na prova. Em casa, não havia o que comer”. “Muitas vezes, chego em casa e falo com meu marido para comprarmos cesta básica para alguma família. A situação é difícil demais. A questão social me preocupa, e passei a enxergá-la com mais nitidez na escola”, acrescenta.

Uma profecia de família

No início da década de 1960, quando era bem novinha, a menina ouvia sempre a avó e a mãe dizendo: “Você será professora”. O desejo se cumpriu, e, durante quase quatro décadas, Solange Rodrigues de Sá – que completará 69 anos na próxima segunda-feira (16/10), um dia após a data dedicada aos professores – se entregou de corpo e alma ao ofício, com a chance de transformar realidades pelo ensino e pela própria experiência pessoal.
 
Nascida em uma família de seis irmãos, na antiga Favela do Perrella, às margens do Ribeirão Arrudas, no Bairro Santa Efigênia, Região Leste de Belo Horizonte, Solange, na infância, fazia tijolos de adobe para ajudar a erguer a casa da família e buscava lenha no mato, que ainda existia nas redondezas, para acender o fogo. “A gente não brincava, só trabalhava. Não conheci meu pai, não tenho o nome dele. Minha mãe e minha avó diziam que eu não seria empregada doméstica, que era o serviço delas.”





Decidida e atenta aos estudos, a menina nunca faltou às aulas, e continuou assim quando a família se mudou para a Vila São Benedito, em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Levei a sério. Fiz o primário, o antigo curso de admissão, o ginásio (atual ensino fundamental) e o magistério, que permitia lecionar, enquanto trabalhava em lojas da capital.”
 
A vontade de aprimorar o conhecimento e superar as dificuldades levou Solange ao curso de pedagogia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), depois à pós-graduação em educação ambiental, enquanto equilibrava as diversas atividades com o casamento e a criação dos filhos Patrícia, hoje formada em pedagogia e professora da rede municipal de ensino de BH, Alexandre, conhecido como Rato, artista plástico e muralista, e Carla, fisioterapeuta.

Determinação no DNA

Viúva e residente no Conjunto Cristina, no Distrito de São Benedito, em Santa Luzia, na Grande BH, Solange hoje está aposentada, mas lembra que “quem foi professora será sempre professora”. Durante mais de duas décadas, ela trabalhou na Escola Municipal Dora Tomich Laender, entre os bairros Minascaixa e Serra Verde, na Região de Venda Nova, em BH.




 
“Nos primeiros tempos, a escola ficava em uma região de grande violência. Muitos alunos perdiam a vida cedo, em conflitos de gangues. Acho que, por ter nascido e vivido em comunidade muito pobre, pude entender melhor a realidade daquelas crianças e adolescentes e fazer um pouco a diferença”, acredita Solange.
 
“Não sei exatamente se o professor pode mudar a vida das pessoas, mas penso que, com nosso apoio, os jovens se sentiam mais valorizados. Tinham confiança em nós, tratavam de assuntos com os professores que, certamente, não tinham condições de falar com os pais”, analisa.
 
Hoje, dedicada a trabalhos voluntários esporádicos, Solange lembra suas histórias com alegria, sem rancor, embora tenha ouvido, ao longo da vida profissional, palavras de preconceito que poderiam desestimulá-la. Não desanimou: “Segui em frente, com coragem, sempre perseguindo meus sonhos”. Com isso, certamente também ajudou muita gente a realizar os próprios. Como todo educador. n





Reportagem especial

Em homenagem à Semana do Professor, o Estado de Minas publica desde domingo série especial que mostra histórias, desafios, exemplos e dificuldades enfrentados pelo profissional que é responsável não só pela formação de todos os profissionais, mas também, em muitos casos, por ser um suporte essencial às famílias de crianças e adolescentes. A primeira reportagem mostrou a situação atual da educação infantil em Janaúba, Norte de Minas, cidade marcada pelo heroísmo da educadora Heley de Abreu, que morreu tentando salvar alunos de incêndio criminoso na Creche Gente Inocente, em 5 de outubro de 2017, 10 dias antes do dia do Professor.