Jornal Estado de Minas

Notícia do câncer de Cristina Kirchner soterra polêmicas que prometiam dominar o país

Renata Tranches

Na Casa Rosada, um recado de Kirchner para o vice-presidente: "Cuidado com o vai fazer" - Foto: Marcio Brindicci/Reuters Brasília – Dona de uma trajetória política que entremeia a própria história pessoal, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, viu sua agenda de segundo mandato se alterar completamente com a descoberta de um câncer na glândula tireoide, tornado público na noite de terça-feira. As polêmicas e embates que prometiam dominar o início do novo governo ficaram para segundo plano e a saúde da chefe de Estado dominou o noticiário. Vindo de uma sucessão de episódios dramáticos nos últimos anos e meses, como a morte do marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, e a gravidez interrompida da nora, Cristina afirmou ontem, na primeira aparição pública após o anúncio da doença, que seguirá trabalhando com “o maior dos compromissos”. Ela será operada dia 4, em uma clínica particular de Buenos Aires, onde deverá ficar internada por três dias.

Analistas políticos argentinos acreditam que o novo episódio forçou um intervalo nos atritos da governante com setores econômicos e com a grande imprensa. Eles consideram também que, a exemplo de outros líderes vizinhos acometidos pela doença (Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Fernando Lugo, Hugo Chávez e José Alencar), a Casa Rosada reagiu de forma adequada ao assumir publicamente o problema e anunciar que o vice, Amado Boudou, assumirá o cargo no período de licença da presidente, entre 4 e 24 de janeiro. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi o primeiro entre os vários líderes latino-americanos que ligaram ontem para a presidente, entre eles a colega brasileira, Dilma Rousseff.

Os principais jornais argentinos dedicaram a capa e um extenso espaço de cobertura para o estado de saúde da presidente. Os diários Clarín e La Nación, adversários do governo e envolvidos em uma longa queda de braço com Cristina, reservaram grande parte de suas edições ao caso, coberto ao longo do dia em seus websites. No do Clarín, abaixo de várias reportagens sobre o tema, aparecia a notícia da publicação, no Diário Oficial argentino, da promulgação da lei que declara de interesse público a fabricação e distribuição de papel-jornal. Na prática, a medida torna estatal a empresa Papel Prensa, e o Clarín e o La Nación deixam de ser seus acionistas majoritários.

A primeira aparição pública após o anúncio do câncer foi em um ato para a apresentação de um programa para sanar dívidas das províncias (estados). A presidente procurou demonstrar força e pediu a empresários e trabalhadores prudência e equilíbrio nas reivindicações, em um cenário econômico no qual os sindicatos se queixam de salários e impostos, enquanto as empresas reclamam da perda de competitividade. Cristina aproveitou para recomendar ao vice, Amado Boudou, que “tome cuidado com o que vai fazer” durante os 20 dias em que assumirá a presidência.

Sem oposição Na avaliação do analista político Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos Nueva Mayoría, de Buenos Aires, o embate entre o governo e o dirigente da poderosa central sindical CGT, Hugo Moyano, assim como os atritos com o governador da Província de Buenos Aires, Daniel Scioli, eram até terça-feira os temas políticos mais relevantes para 2012. “Agora, passou a ser a saúde presidencial”, afirmou. Fraga analisa que quanto maior a personalização da liderança política, como no caso da Argentina, mais importante é o tema da saúde. “Ainda mais que, nesse caso, se trata da maior acumulação de poder político-institucional desde 1983”, comenta o analista.

A notícia pegou todo o país de surpresa. Para o professor argentino Luís Fernando Ayerbe, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp, gerou um clima de solidariedade na Argentina. “Sempre que algo assim acontece, as diferenças com a oposição ficam um pouco adormecidas”, afirmou. “Houve um grande debate político nas última semanas, mas essa notícia (da doença) cria um intervalo.”

Tanto Ayerbe como Fraga veem como positivo o fato de o governo tratar com transparência a doença da presidente e divulgar o diagnóstico prontamente. O jornal La Nación trouxe uma reportagem na qual afirma que Cristina levou um grande susto ao ouvir a palavra câncer e teve um “momento inicial de consternação”, mas logo se recompôs ao ser tranquilizada pelos médicos. Em seguida, o secretário de Comunicação da Casa Rosada, Alfredo Scoccimarro, fez um comunicado breve e claro sobre o caso, a exemplo do que fizeram o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente paraguaio, Fernando Lugo. Atitude contrária teve Chávez, que até agora mantém sigilo sobre seu estado de saúde, alimentando especulações.