Jornal Estado de Minas

Reféns, crianças convivem com a violência na Síria

AFP

- Foto: KHALIL MAZRAAWI / AFP

Elas usam foguetes como traves de futebol, os tanques abandonados são suas ilhas do tesouro. Em seu mundo, a guerra é um jogo, as crianças sírias são reféns de um conflito que as forçou a banalizar a morte e a violência, asseguram os moradores e ativistas.

Na velha cidade de Homs (centro), sitiada pelo Exército, as crianças brincam de guerra entre rebeldes do ESL (Exército Sírio Livre) e soldados do regime, usando quiabo como munição e berinjela como granada.

Oum Mohammed, contatado pela AFP via Skype, afirma que seus netos, o mais velho com apenas nove anos de idade, não têm mais medo do barulho das bombas nem dos tiros e brincam com os estilhaços como se fossem simples brinquedos. "Mas às vezes eles acordam à noite chorando. Nenhuma criança deve ver o que elas veem... o que já viram muito", lamenta.

Para os adolescentes às vezes é ainda pior. Em Aleppo (norte), mergulhada desde 20 de julho na guerra, um jornalista da AFP viu vários deles armados com kalashnikovs, tomando parte na luta.

De acordo com o OSDH (Observatório Sírio dos Direitos Humanos), mais de 1.300 crianças morreram durante os 17 meses de violência. Sem mencionar aqueles que estão detidos.

O Centro de Documentação das Violações na Síria mostra que entre o início do levante, em meados de março de 2011, até meados de agosto de 2012, cerca de 698 crianças já passaram pelas prisões do regime.

Na terça-feira, a principal coalizão de oposição, o CNS (Conselho Nacional Sírio), afirmou que uma criança de 14 anos foi torturada até a morte na prisão, na cidade portuária de Latakia.

"As crianças são reféns da violência. Elas não fizeram nada para criar a guerra, mas foram pegas na armadilha", lamenta Omar, um ativista em Hama (centro), que tem dois sobrinhos jovens.
Escudo psicológico contra o horror

As crianças que foram vítimas de violência direta ou indiretamente desenvolvem um alto nível de resistência, que serve como um escudo psicológico contra o horror, mas que ao mesmo tempo as leva a aceitar como normal o que não é.

"Meu sobrinho tem sete anos de idade, mas se comporta como um adulto", disse à AFP Omar, via Skype. Procurado pelas autoridades, o militante envia regularmente o seu sobrinho para inspecionar a rua e verificar se há algum militar por perto. "Como tio, fico triste em ver que ele perdeu sua juventude".

No Líbano, a psicóloga Lina Issa trabalha com os refugiados sírios neste país marcado por décadas de guerra civil.

"A morte tornou-se muito normal para muitas crianças", lamenta.

"Mesmo que as crianças sejam apresentadas como heroínas pelas duas partes, elas não devem crescer assim. Elas precisam que esta situação mude", ressalta.

De acordo com a psicóloga, as crianças têm uma grande capacidade de se recuperar. "Mas os verdadeiros sintomas de angústia levarão muito tempo para surgir. Apenas quando a estabilidade for restaurada saberemos os danos psicológicos reais do conflito", disse.

Cada criança reage à sua maneira, algumas, "que já deviam andar e falar, não começaram a fazer isso", relata.

"Quando eu crescer, quero ser médica" "Outros estão em fase de rejeição" e desenham apenas corações e flores.

Um vídeo amador postado na internet por ativistas mostra uma menina ferida por uma tiro, chorando nos braços de seu pai em Aleppo, dizendo "eu estou bem, eu estou bem" ao médico que tenta tratá-la,.

Uma pesquisa recente do Unicef sobre as famílias sírias de refugiados no Líbano mostra que 54% das crianças esperam um evento negativo no futuro, até mesmo se for fora da Síria.

"Uma das crianças acomodadas em um espaço da Unicef reservado para os pequenos no Líbano entra em pânico cada vez que vê alguém em um telhado", porque "ela tem medo de atiradores", conta Isabella Castrogiovanni, uma história reveladora do sentimento de insegurança que persiste.

Mas, mesmo nas piores circunstâncias, algumas crianças conseguem manter a esperança. Na antiga cidade de Homs, uma menina de sete anos de idade contatada via Skype disse à AFP: "Quando eu crescer, quero ser médica para ajudar os feridos".

Mesmo que tenha tido que fugir do abrigo duas vezes por causa da violência, ela não reconhece que vive em uma situação de risco ou que esteja refugiada dentro de seu próprio país, considera estar em casa em seu novo abrigo.

"Eu moro em casa com minha família, está tudo bem", garante.

Outros têm mais dificuldades e sua imaginação é invadida pelas mortes diárias na Síria. Seus projetos refletem a violência, conta Issa.

"Uma criança me conta histórias todos os dias, como parte de seu tratamento. O cenário muda, mas o final é sempre o mesmo: todos morrem".