Jorge Fontoura - doutor em direito internacional, professor titular do Instituto Rio Branco
Você saberia dizer o nome de um presidente venezuelano pré-Chávez? Nem você, nem o mundo. No entanto, hoje, todos os meios, em todos os continentes, noticiam com destaque a morte do inefável político latino-americano, que soube como ninguém inserir-se e inserir seu país e sua região no macrocenário da política internacional. Polêmico e provocador, dotado de incomum capacidade de criar fatos e de gerar notícia, Chávez era um comunicador inato, com notável capacidade de despertar amor e ódio, sempre com drama e paixão, no melhor estilo das famosas novelas televisivas de Caracas – para muitos, superiores às brasileiras.
Em menos de duas décadas de poder, bem menos do que os “pais da pátria” do entorno latino-americano, Chávez exerceu com inegável competência a lenta absorção dos poderes do Estado, transitando com maestria no tênue limite entre o autoritarismo dos fatos e a preservação da aparente ordem republicana, de eleições, partidos e a da opinião dos outros, o que era de difícil compreensão para seu estilo "comandante" de fazer as coisas.
Criticado com paixão apostólica por seus detratores, como inimigo comum de paladinos da democracia canônica, Chávez era um alvo fácil, com seu estilo raro de fazer e de dizer as coisas, sem a liturgia do cargo, ou mesmo sem respeito aos lugares e às circunstâncias. Nesse sentido, o repertório de suas frases ferinas e de gosto duvidoso, com o vocabulário e com o humor grosseiro das ruas, ficará por certo na memória do lado pitoresco de sua personalidade, seja no púlpito solene das Nações Unidas, seja na cenas roubadas dos grandes fóruns mundiais, em que sempre causou frisson.
Fruto de uma história trágica, de um continente de veias abertas, como no livro de Galeano com que presenteou Obama com nonchalance Chavez é produto da Venezuela e de suas contradições seculares e não o contrário, como seus críticos ferozes parecem querer insinuar. Tão certo quanto não sermos a Suíça, os fatos e números são eleoquentes, quando especulamos sobre a memória e o legado que o presidente falecido deixa: a pobreza absoluta na Venezuela da era Chávez caiu de 55%, em 1995, para pouco mais de 26%, nos últimos censos – claro que com pródiga política assistencialista para as classes desfavorecidas. O desemprego de 7,8% causa surpresa, em uma economia reiteradas vezes considerada fracassada e minada pelo mau uso da riqueza do petróleo.
Nesse período, Chávez obteve 56% dos votos em 1988 e 60% em 2000; sobreviveu a um golpe de Estado em 2002; recebeu mais de 7 milhões de votos em 2006 e, em sua derradeira eleição, em novembro, obteve quase 55% dos votos válidos, em processo de correção modelar, reconhecida mesmo pela outra Venezuela, a de Henrique Capriles e de infinitos observadores internacionais. Figura controversa para este e para outros tempos, Hugo Chávez permanecerá como um político de difícil classificação para os que continuam a ver o mundo pelo prisma fácil do maniqueísmo da Guerra Fria.
Superados os dilemas constitucionais do período de vacância – o que deverá ocorrer com rapidez em face do exíguo prazo de 30 dias para novas eleições –, por certo a Venezuela reencontrará seu caminho, amadurecida e responsável, como demonstrou nas últimas eleições presidenciais, contra o agouro dos antichavistas fóbicos. Sobre o legado do falecido presidente, não unanimemente pranteado, resta a esperança de que, em uma perspectiva de tempo, também não possam ser suas as últimas e desesperançadas palavras de Simon Bolívar: “Lavrei nos mares, semeei nos ventos”.