Gabriela Freire Valente
Brasília – O escritor argentino Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1980, negou que o papa Francisco tenha tido qualquer vínculo com a ditadura militar que vigorou no país entre 1973 e 1983. Esquivel, premiado justamente pelo trabalho na defesa dos direitos humanos durante o regime, saiu em defesa do novo pontífice em meio às discussões sobre a responsabilidade do então padre jesuíta no sequestro de dois colegas de ordem, em 1976, e sobre a participação da hierarquia católica em crimes cometidos pelo governo. "Havia bispos que eram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não", afirmou Esquivel à rede BBC.
Apesar da intervenção do Nobel da Paz, entidades que dão apoio às vítimas da ditadura argentina não receberam bem a eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio. Nas redes sociais, membros de organizações como a Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio (Hijos, em espanhol) fazem questão de lembrar as acusações feitas a Bergoglio já como arcebispo de Buenos Aires. "A cúpula da Igreja também foi a ditadura: Bergoglio é acusado de crimes contra a humanidade. Não se esqueça", diz a instituição em sua página no Twitter. Segundo Martín Fraga, membro da Hijos, as entidades argentinas não acreditam que o papa será capaz de "ter uma postura crítica a respeito de suas ações no passado".
Um comunicado das Mães da Praça de Maio, uma das principais associações que buscam desaparecidos durante o período do regime, lembrou a perseguição aos próprios membros da Igreja durante a década de 1970. "Fizemos uma lista de 150 padres assassinados pela ditadura, casos que nunca foram comentados pela Igreja oficial. A Igreja oficial é opressora, mas a do Terceiro Mundo é libertadora. Mantemos relações somente com os sacerdotes do Terceiro Mundo e, sobre o papa nomeado ontem (quarta-feira), só temos a dizer amém", informou a organização.
ACUSAÇÕES A denúncia sobre o suposto vínculo do então padre Bergoglio com o regime militar foi feita pelo jornalista Horacio Verbitsky. No livro El silencio, publicado em 2005, Verbitsky apresenta testemunhos segundo os quais, em 1976, Bergoglio – na época líder dos jesuítas na Argentina – teria retirado a licença de trabalho dos padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, dias antes de eles serem detidos por agentes do governo, que os levaram à Escola Mecânica da Armada (Esma), uma das unidades militares transformadas em centros clandestinos de detenção para presos políticos. A interpretação da sequência de eventos levou as vítimas a acreditar que Bergoglio as teria entregue à repressão. "Eu conheço pessoalmente muitos bispos que pediram à junta militar a libertação de prisioneiros e padres, mas não foram atendidos", relatou Pérez Esquivel.
Eurico Gonzalez, professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB), afirma que "não é de estranhar" que o clero argentino da década de 1970 estivesse próximo ao governo, uma vez que a Constituição define o catolicismo como religião de Estado. "Nenhum clérigo está livre de manter relações com o governo. Eles têm um ministério para o controle da liberdade de religião", explica. Osvaldo Coggiola, professor de história contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que o regime militar argentino adotou leis que beneficiaram financeiramente a Igreja. "O papel da Igreja na ditadura não é tão conhecido, e agora o mundo inteiro vai falar sobre isso", disse Coggiola.
Enquanto arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio chegou a ser chamado para testemunhar em um processo relacionado ao roubo de bebês de prisioneiras políticas. Em 2011, foi convocado por uma juíza da França para uma audiência – à qual nunca compareceu – sobre o desaparecimento de um padre francês na Argentina, em 1976.
Imagem atacada
Na véspera da votação, todos os cardeais participantes do conclave em Roma receberam um e-mail que denunciava suposta cumplicidade do cardeal argentino com a última ditadura militar em seu país. A revelação é da biógrafa de Bergoglio, Francesca Ambrogetti, coautora (com Sergio Rubin) de O jesuíta – Conversações com o cardeal. Ela, porém, não revelou a autoria da mensagem, mas disse que os cardeais “não levaram em conta” a denúncia, porque, segundo a escritora, sabem que ela é infundada.