Cidade do Vaticano – Livres do voto de silêncio e das vestes vermelhas, três dos cinco cardeais brasileiros participantes do conclave comentaram a surpresa do resultado da votação secreta pouco depois de deixarem a Casa Santa Marta, na manhã de ontem. Em entrevista coletiva no Colégio Pio Brasileiro, em Roma, também quiseram demonstrar o desejo de mudança do Colégio Cardinalício, ao eleger como papa o argentino Jorge Mario Bergoglio. Bem mais acessíveis que na última semana, os religiosos enalteceram o jeito simples do escolhido e reforçaram os ineditismos em torno do primeiro sumo pontífice latino-americano, jesuíta e de nome Francisco. “Estamos diante de uma série de indicações que nos dão muita esperança”, disse dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, que entrou para o conclave como um dos mais cotados para suceder Bento XVI.
Antes de qualquer pergunta dos jornalistas sobre o assunto, dom Odilo disparou, em tom de desabafo: “As cotações prévias foram todas para o espaço. Há que se compreender uma coisa: a Igreja não é feita somente de cálculos humanos”. Ele usou a expressão “ter os pés no chão” e garantiu nem sequer ter cogitado uma vitória. “Dizia comigo mesmo: está tudo furado”, contou, negando saber sobre especulações.
Dom Odilo transpareceu desconforto com avaliações sobre disputas no conclave. “É um ambiente de muita seriedade e de oração. Não identifiquei em momento algum partidos, esse negócio de direita e esquerda”, argumentou o gaúcho, que fez muitos brasileiros sonharem com a possibilidade de verem um compatriota ser apresentado como papa. Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Raymundo Damasceno destacou a mensagem de “pobreza e solidariedade” na escolha do nome Francisco e analisou o conclave. “A gente não experimenta pressão alguma, a gente se sente totalmente livre”, defendeu, ao frisar que, na Capela Sistina, os interesses da Igreja sobressaem aos individuais.
DISCUSSÃO No mesmo sentido, dom Geraldo Majella chegou a responder com naturalidade quando perguntado sobre a influência dos escândalos de abusos sexuais e do VatiLeaks na eleição: “Ninguém estava preocupado com isso”. Sobre a idade do cardeal escolhido – 76 anos –, o arcebispo emérito de Salvador comentou que “em pouco tempo ele pode fazer muito e dar um testemunho vibrante para o mundo”. Dos três, ele é o único que participou pela segunda vez de um conclave. Em 2005, recordou dom Geraldo, não houve “discussão” para tornar papa o cardeal alemão Joseph Ratzinger. “Não é que agora existisse uma grande discussão, mas parece que este papa não era assim tão esperado”, comparou.
Provocados sobre a rivalidade entre Brasil e Argentina, os cardeais encararam com bom humor. “A disputa é mais no campo do futebol, entre Maradona e Pelé. No campo religioso não há isso, se trata da mesma Igreja”, respondeu dom Raymundo. “Como os argentinos são chamados no Brasil? De hermanos. Somos povos irmãos, nos sentimos assim”, arrematou dom Odilo.
Três perguntas para:
Dom Raymundo Damasceno
presidente da CNBB
Surpreendeu a fumaça branca no fim do segundo dia?
Surpreendeu porque antecipou um dia, na minha previsão. Não passaria desta semana, mas pensei que o conclave fosse terminar na quinta (ontem) ou na sexta-feira (hoje). Quando começou a votação, imaginei que fosse demorar mais. Mas o nome escolhido, embora não fosse muito citado no mundo externo, era algo possível. Eu o conheço há muitos anos e gostei quando ele surgiu como possibilidade.
O que representa um papa latino-americano para a Igreja do Brasil?
Trata-se de uma mudança geopolítica na Igreja, marcando quase um deslocamento de importância dada ao continente. É uma grande novidade, e estamos nos sentindo muito honrados por este momento da história. O papa, agora, é americano, porque a América guarda uma unidade. Apesar das diferenças, temos uma cultura cristã.
Perdemos as chances de ter um papa brasileiro?
Essa possibilidade não está anulada. Termos um papa latino-americano agora não exclui as chances de, num futuro, termos um papa brasileiro. Evidente que o critério não é esse de ir alternando continentes ou países. Para nós, não importa de onde o papa é. Importa ele ser pai da cristandade e pastor universal.
Dom Odilo Scherer
Arcebispo de São Paulo
O "tempo de dificuldade" da Igreja está superado?
Não, claro que não. Isso não acontece automaticamente. As dificuldades continuam e precisam ser enfrentadas. E o novo papa vai contribuir nesse sentido. Mas não há um novo absoluto, o que existe é uma passagem de uma fase para outra. Certamente, haverá novas iniciativas pastorais.
Por que lhe incomodou a repercussão em torno do nome do senhor como possível papa?
Não tomei conhecimento, justamente para ficar tranquilo. Uma coisa é certa: a escolha do papa e outras decisões da Igreja não se resolvem na base da torcida. Muitas vezes se encara a Igreja a partir de clichês, de preconceitos e de ideias genéricas. A Igreja é uma instituição séria, bimilenar e tem muita história.
A escolha de um cardeal argentino revela a força da Igreja na América Latina?
Um papa latino-americano certamente põe em evidência o continente onde vive quase metade dos católicos do mundo. Mas esse critério territorial não foi decisivo. O que importou foi a escolha de alguém que, de alguma forma, respondesse àquilo que hoje a Igreja precisa ser para o mundo. Os prognósticos poderiam ser tantos, mas, no fim, ninguém se encaixa perfeitamente.
Dom Geraldo Majella Agnelo
Arcebispo de Salvador
Quando foi mais fácil chegar ao consenso em torno de um nome: neste conclave ou em 2005?
Nos dois houve um exercício para votarmos e chegarmos logo aos dois terços necessários. O cardeal Joseph Ratzinger sobressaía muito. Era, eu diria, quase que um candidato, um candidato forte, alguém já conhecido na Igreja. Desta vez, não teve ninguém que entrou no conclave como Ratzinger entrou. Eram muitos os nomes falados.
O escolhido coincidiu com o perfil que vocês traçaram durante as Congregações Gerais?
Sim, mas ninguém fala em nomes durante as reuniões antes do conclave. Dizíamos somente que precisávamos de alguém com um determinado perfil. E esse perfil foi atendido. Até superou o desejado, eu acho. A preocupação, demonstrada por ele, pelo sofrimento dos mais pobres e dos mais esquecidos era algo comentado desde o primeiro momento.
Que fase é esta que a Igreja começa a viver com o novo papa?
A indiferença é uma grande tentação do mundo atual. As pessoas não se preocupam mais com os outros, somente consigo. O fato de o cardeal Jorge Mario Bergoglio ter escolhido o nome Francisco vai fazer o mundo inteiro se lembrar da simplicidade vivida pelo santo de mesmo nome. Não tenho dúvida de que esse gesto vai chamar a atenção das pessoas.