Santa rebeldia
Na entrada da cidade, dentro da Basílica de Nossa Senhora dos Anjos, está a Porciúncula, uma igrejinha de pedras que Francisco de Assis teria ajudado a erguer depois de ouvir dos céus a ordem de “reconstruir a Igreja”. Não se tratava, porém, da estrutura física. Ao entender isso, o jovem esnobou a riqueza do pai, desafiou o bispo e provocou mudanças profundas nas bases católicas da época. Conta a história que Francisco, certa vez, convidou os amigos para “pregar o evangelho”. Deram uma volta na praça e, sem dar uma palavra, voltaram para o convento, onde o santo ensinou que o jeito simples de ser basta para passar uma mensagem. Francisco, o papa, abraçou desafio semelhante.
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Santo turismo
Nascido e criado em Assis, o dono de restaurante Antonio Cianetti, de 53, espera o mesmo que os turistas. “É um belo momento para resgatar os valores mais importantes da Igreja”, comentou, na expectativa de receber mais clientes depois a confirmação de que o papa, de fato, se inspirou no santo conterrâneo para decidir o nome. Nos últimos dias, o taxista Mario Terenze, de 46, transportou mais passageiros que o normal. “Depois do papa Francisco, muita gente que estava em Roma aproveitou para conhecer logo Assis”, conta. Terenze é outro que crê em turismo mais aquecido nas próximas semanas, mesmo em baixa temporada e com os termômetros marcando temperaturas negativas.
O papa Francisco e os desafios do concílio
Rodrigo Coppe Caldeira*
Rezar em latim e de costas para os fiéis é um dos elementos lembrados por alguns como o sinal de uma Igreja antiquada e descompassada com o tempo presente. Forma ritual advinda da reforma de Trento (século 16) e “ultrapassada” pelas determinações do Concílio Vaticano II (1962-1965), mas retomada por Bento XVI, este é apenas um dos aspectos da recepção conciliar que o próximo papa enfrentará. O complicado e contraditório processo de recepção – brindado pela renúncia de um papa na comemoração dos 50 anos do evento –, é o maior dos desafios internos do papa Francisco.
Intricada e cheia de nuanças, a questão da recepção conciliar marcou o papado de João Paulo II e, especialmente, de Bento XVI. Cresceram e aprofundaram-se os debates em torno de seus significados. A busca de uma interpretação adequada dos documentos promulgados torna-se o centro de inúmeras controvérsias. Há uma verdadeira luta entre aqueles que se acreditam herdeiros e intérpretes legítimos do concílio. A escolha da maioria dos padres conciliares apontou para o desejo de ultrapassar a simples condenação dos valores modernos. Atitude recorrente do Magistério Eclesiástico da Igreja do século 19 até a metade do 20.
A crença que atravessava a geração entusiástica do concílio era de que a Igreja faria as pazes de uma vez por todas com a modernidade. Não foi o que se viu. Sair da pura negatividade para a pura positividade parece não ter surtido o efeito desejado. Por isso tantos desiludidos. A desilusão, logo após alguns anos da conclusão do concílio, marcou uma inteira geração que acreditava que a Igreja resolveria suas pendengas com a modernidade. Por isso também, as inúmeras avaliações negativas, advindas do orbe progressista, dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Ambos considerados como “restauradores” da ordem eclesial anterior ao concílio. Só poderiam ver nesses pontificados o signo da “restauração”, já que não respondiam da forma como acreditavam que deveriam: aceitação dos valores modernos, não mais negatividade e contradições.
Otimistas em relação ao futuro, esperavam uma mudança profunda da Igreja Católica em direção positiva à modernidade. Viram-se frustrados em suas esperanças. Desiludidos, conclamam incessantemente a um nebuoloso “espírito do concílio” para levar a cabo “projetos de Igreja” não previstos nos próprios documentos. É preciso ir além da letra, afirmam. Outros, firmam-se na letra e compreendem que a crise que assinala a recepção relaciona-se com uma interpretação equivocada do concílio. Bem ao estilo de Joseph Ratzinger.
As perguntas que se levantam agora é como o papa Francisco conduzirá a questão. A eleição de Bergoglio para o sólio papal certamente é mais um sinal dos tempos. Histórica por alguns motivos: levar pela primeira vez, depois de quase 1,3 mil anos, um homem não europeu ao trono de Pedro; por ocorrer depois da primeira renúncia de um papa na época moderna; pela escolha do nome Francisco, assinalado por carga simbólica que sugere renovação, simplicidade, humildade e doação. A luta pelo concílio continua e avança no recém-inaugurado papado de Francisco.
Como diz o historiador Georges Duby, “os acontecimentos são como a espuma da história, bolhas que, grandes ou pequenas, irrompem na superfície e, ao estourar, provocam ondas que se propagam a maior ou menor distância”. As ondas do Vaticano II ainda se propagam e chegam até Francisco. O futuro dirá o que foram capazes de realizar no novo papado: marolinhas insignificantes, ondas medianas ou verdadeiros tsunamis.
* Historiador e professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas