O Senado uruguaio votará nesta terça-feira um projeto de lei mundialmente inédito e que visa a regular a produção e a venda de maconha, uma experiência que o governo pretende fazer para tentar combater o narcotráfico.
O texto - aprovado em julho pela Câmara de Deputados - tem sua sanção assegurada pelo apoio da governista coalizão esquerdista Frente Ampla, que controla as duas câmaras.
A iniciativa foi apresentada há um ano e meio pelo governo do presidente José Mujica junto a uma série de medidas para frear o aumento da insegurança pública e desencorajar a violência associada ao narcotráfico.
"Este é um experimento", admitiu Mujica em agosto passado, em entrevista à AFP. "Podemos fazer uma verdadeira contribuição à humanidade", disse.
O projeto concede ao governo o controle e a regulamentação da importação, cultivo, colheita, distribuição e comercialização da maconha e de seus derivados.
Depois de se registrar, os residentes maiores de 18 anos poderão cultivar até seis plantas, ter acesso à droga em clubes de usuários ou comprar até 40 gramas por mês nas farmácias.
A experiência se soma à legalização recente do aborto e do casamento gay e mantém o Uruguai em uma posição de liderança no reconhecimento de direitos.
A lei sobre a maconha desperta resistência entre os 3,3 milhões de uruguaios. Uma pesquisa feita em setembro apontou que 61% são contrários a ela.
A legalização da maconha causou espanto nos vizinhos Brasil e Argentina, e despertou dúvidas sobre seu real efeito se for aplicada em países que sofrem com o narcotráfico, como Colômbia e México.
"Não há muita criminalidade em torno do tema no Uruguai, então a mudança não é profunda. É basicamente um experimento, mas não é um experimento que possa ser replicado com facilidade" em países de tamanho maior, declarou à AFP Steven Dudley, codiretor do site Insightcrime, especializado em narcotráfico na América Latina.
O Uruguai enquadra a iniciativa na postura da Comissão Global de Política de Drogas - integrada pelos ex-presidentes da Colômbia César Gaviria e do México Ernesto Zedillo, entre outros - que sustenta que a guerra contra as drogas fracassou.
Mujica, um ex-guerrilheiro de 78 anos, calcula que o país gasta 80 milhões de dólares anuais para combater o narcotráfico e manter os presos por crimes vinculados à droga.
Atualmente, consumir drogas não é penalizado, mas apenas comercializá-las. O consumo de maconha é o mais estendido entre as drogas ilegais e duplicou nos últimos 10 anos.
Segundo as autoridades, há 128.000 consumidores de maconha, embora as associações de consumidores calculem que este número alcance os 200.000.
Melhor preço e qualidade
O governo planeja atrair os consumidores com uma maconha mais barata e de melhor qualidade que a comprada hoje no mercado ilegal.
"Vamos levar em conta os preços no mercado negro até começarmos a desestruturar o funcionamento deste mercado", declarou à AFP Julio Calzada, secretário-geral da Junta Nacional de Drogas.
Mas o projeto divide os médicos uruguaios, que afirmam, por um lado, que diminuirá o consumo de drogas mais perigosas enquanto, por outro, que banaliza os efeitos nocivos da maconha.
"Quando esta lei for aprovada, a mensagem que você enviará a toda a população é que é uma droga, mas é menos pior que outras drogas e, portanto, passível de ser consumida", afirmou à AFP o psiquiatra Pablo Trelles, que trabalha com jovens viciados.
Já os legisladores da oposição advertem que a lei corre o risco de provocar um aumento do consumo.
Os consumidores também não são unânimes. Alguns não veem com bons olhos o registro para ter acesso à droga.
Calzada admite que o maior risco é que a regulação "possa disparar o consumo se não realizarmos bem os controles".
Os olhos do mundo no Uruguai
Os especialistas também têm opiniões diferentes.
"O Uruguai pode impulsionar o discurso internacional, científico e político sobre como desenvolver um controle de drogas mais razoável e mais afetivo", declarou à AFP Hanz-Joerg Albrecht, diretor do instituto Max Planck para o direito penal.
Albrechta acredita que os maiores riscos são de aumento do consumo e de que ocorram problemas de saúde na população, mas advertiu que é difícil determinar a causa-efeito deste tipo de casos.
Já Arjan Roskam, dono da holandesa Green House, o maior banco de sementes de maconha do mundo, adverte que se a regulação ocorrer "de uma forma muito socialista não funcionará".
Roskam, um dos especialistas consultados pelo governo uruguaio, comentou à AFP que se tudo depender do Estado e se não for permitida a venda a turistas "seguirá havendo comércio na rua, o que não soluciona o problema" do mercado negro.
Enquanto o governo espera ter pronta a regulamentação da norma em abril de 2014 e o mundo observa, novas lojas especializadas em produtos para o cultivo de maconha ou um banco de sementes local que oferece grãos à espera da legalização mostram que a cultura da maconha é cada vez mais propagada.