Jornal Estado de Minas

Canonização reúne fato incomum com quatro papas no Vaticano

Igreja Católica vive hoje um dia incomum em sua sede com a canonização de dois papas em processos que instigam a reflexão de fiéis sobre as mudanças adotadas por Francisco

Diego Amorim
Cidade do Vaticano – A dupla canonização de hoje, com a presença confirmada de Bento XVI e de milhares de peregrinos, pode representar importantes mudanças no conceito de santidade pregado pela Igreja Católica.
Ao promover João XXIII e João Paulo II, após processos canônicos controversos, o papa Francisco instiga a reflexão sobre um hábito arraigado entre católicos e um dos pontos mais sensíveis de divisão entre os cristãos: o culto e a devoção aos santos, com direito a rezas específicas e imagens em altar.

Os dois papas contemplados na cerimônia não realizaram grandes milagres aos olhos humanos. Não sofreram martírio, não receberam as chagas de Cristo nem mesmo levitaram, como consta em relatos da Igreja sobre a vida de outras divindades de carne e osso. O processo de canonização de João Paulo II começou e terminou, em tese, antes do prazo considerado necessário. O de João XXIII, ao contrário, se arrastou e acabou concluído sem a comprovação de um segundo milagre. Afinal, o que faz a Igreja rotular alguém de santo?

No Brasil, ainda o maior país católico do mundo, a devoção aos padroeiros é uma tradição, mais do que qualquer questão de fé. Sobretudo no interior do país, a religiosidade e a crença no poder divino de grandes homens e mulheres fazem fiéis se curvarem diante de imagens, acender velas, pagar promessas e implorarem graças. Isso serve de combustível para críticas agressivas de evangélicos, que encaram a euforia católica como idolatria, prática abominável segundo a Bíblia, de ambas as religiões.

Ao elevar à glória dos altares homens simples e próximos do povo, embora tenham sido pontífices, a Igreja de Francisco busca amenizar o peso de um estereótipo, avaliam vaticanistas, além de resgatar a essência da santidade.
“Os santos costumam ser invocados em momentos de dificuldades. Tudo bem, mas não é isso. Santo é alguém para ser imitado”, diz, em tom de correção, dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, em Roma.

Evitando o termo idolatria, o representante da Igreja no Brasil, amigo de Francisco, lembra aos católicos que “quem faz o milagre é sempre Deus, não o santo”. Caminhando pela Praça de São Pedro na manhã de ontem, já tomada por gente do mundo inteiro, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, reforçou o argumento de que os santificados precisam ser encarados pelo rebanho, acima de tudo, como “testemunhas de fé e do evangelho”, para além de venerações, mandingas e rezas.

PARA CONSUMO
Descolado dessa teoria, o comércio de lembrancinhas dos dois novos papas vai muito bem, obrigado, nestes dias, em Roma, graças aos próprios santos e à multidão de fiéis. As imagens do polonês João Paulo II e a do italiano João XXIII – um desconhecido, para muitos – sorriem nas vitrines de lojas e em bancas de camelôs, estampadas em grandes cartazes, embalagens de terços, chaveiros, ímãs de geladeira. Nos arredores do Vaticano, imigrantes africanos vendem até lenços de cabeça com as fotos das santidades do momento.

O altar da casa do engenheiro civil Marcelo Lima Almeida, de 55 anos, em Teresina (PI), ganhará uma pequena estatueta de João Paulo II na volta de mais uma viagem com a família ao coração da Igreja. Disposto a passar na Praça de São Pedro a noite que antecederia a cerimônia, ele dizia não ver problema algum em venerar imagens. “É uma lembrança diária, algo concreto para que eu olhe e me recorde de que aquela pessoa existiu e pode, de alguma forma, servir de modelo. Nada mais do que isso”, tenta explicar um dos milhares de brasileiros presentes no Vaticano.
Estudantes da Universidade de Brasília (UnB), onde organizam missas diárias, Arthur D’Almeida, de 26, e Laura Almeida, de 21, são namorados e querem ser santos como João XXIII e João Paulo II – mesmo que jamais venham a ser reconhecidos assim pela Igreja. “Santo é uma pessoa que viveu, sofreu, chorou, passou por alegrias, por momentos difíceis, mas não perdeu de vista as virtudes cristãs”, define ela. “Podemos falar com eles, porque estão mais perto de Deus”, emenda ele, com a bandeira do Brasil nas costas.

No mesmo grupo de brasilienses, Joice Ventura, de 28, entra na conversa sobre santos e conta que reza diretamente para a madrinha, que morreu em 2003, vítima de câncer. “Tenho certeza de que ela foi uma santa e intercede por mim”, justifica a jovem. “Podemos venerá-los, mas não é adoração.
Imagem é como a foto de alguém querido que guardamos como lembrança”, acrescentou a universitária paulistana Maria Isabel Gonçalves, de 19, reconhecendo que – “infelizmente”, segundo ela – nem todos os católicos pensam dessa forma..