Rodrigo Craveiro
Brasília – Muitos consideraram o documento um terremoto que abalou as estruturas conservadoras da Igreja. Depois de oito dias do Sínodo Extraordinário da Família, que reuniu 200 bispos na Cidade do Vaticano, a Santa Sé divulgou o chamado relatio post disceptationem. O texto de 12 páginas, um resumo das discussões dos religiosos, sinaliza uma mudança radical na retórica do catolicismo em relação a temas polêmicos e defende tolerância para com os gays e o divórcio, apesar de seguir não apoiando o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Os homossexuais têm dons e qualidades a oferecer para a comunidade cristã: nós somos capazes de acolher essas pessoas, garantindo a elas um espaço fraterno em nossas comunidades? Muitas vezes, elas desejam encontrar uma Igreja que lhes ofereça um lar acolhedor”, afirma, em um das passagens que simbolizam a abertura da Igreja.
Além de considerar aspectos positivos do casamento civil e oferecer uma abordagem mais benevolente em relação às uniões estáveis, o documento prega um discernimento espiritual sobre os divorciados. “Compete à Igreja reconhecer essas sementes do Verbo dispersas para além de suas fronteiras visíveis e sacramentais”, diz o texto. “Ao seguir o amplo olhar de Cristo, cuja luz ilumina a todos os homens, a Igreja se dirige com respeito a aqueles que participam na sua vida de modo incompleto e imperfeito, apreciando mais os valores positivos que possuem”, acrescenta. Também orienta os pastores a tratarem esses fiéis com respeito, evitando o preconceito. Pela primeira vez, a Igreja parece procurar seguir a direção determinada pelo papa Francisco nos 18 meses de pontificado. De acordo com o relato, a Igreja se reveste de “nova sensibilidade” para buscar entender “a realidade positiva do casamento civil e, dadas as diferenças, o concubinato”.
“É parte da virada ‘jesuíta' da Igreja, uma ordem sempre pronta a identificar as necessidades de marketing da instituição”, explica Luiz Felipe Pondé, filósofo e professor de ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “No uso de uma linguagem acolhedora e afetiva, a Igreja demonstra estar em movimento para abraçar a causa dos homossexuais. Quanto a mudanças concretas, é um começo, sem dúvida. Em religião, com o tempo, se faz tudo o que for necessário para não se perder mercado.”
O documento causou reações acaloradas e fortes críticas de alguns religiosos, principalmente da África. O arcebispo Bruno Forte, secretário especial do Sínodo, resumiu a tônica do texto. “Em vez de proferir sim-sim e não-não, pré-julgamentos, trata-se de compreender a complexidade das realidades das famílias”, declarou.
DOUTRINA
O vaticanista John Thavis, autor de The Vatican diaries (Os diários do Vaticano), acredita que a Igreja não está mudando a posição doutrinária em relação à homossexualidade. “No entanto, parece estar deixando de lado a linguagem que alienou tantas pessoas, incluindo a palavra ‘desordenado’, que sempre foi usada para descrever o padrão da orientação homossexual”, afirmou à reportagem, por e-mail. Ele concorda com Pondé no que diz respeito à inclinação da Santa Sé em direção a uma postura mais flexível sobre antigos dogmas. “O sínodo reconhece que, para evangelizar e para obter a audiência de pessoas modernas, a fórmula antiga não mais funcionará”, observa.
Ex-aluno do papa emérito Bento XVI, o teólogo norte-americano Joseph Fessio lembra que o “relatio” não é uma declaração oficial da Igreja. “Ainda não houve uma discussão formal dos temas, mas uma série de apresentações, frequentemente desconectadas uma das outras. O documento será a base para o debate atual que ocorrerá em pequenos grupos (circuli minores) durante a segunda e última semana do sínodo”, comenta. Ao comentar o trecho mais marcante do documento, Fessio faz uso da ironia. “É verdade que os homossexuais têm dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã. Isso também vale para muitos membros da máfia que doam contribuições generosas à Igreja. Um banqueiro desonesto também pode ser um pai bondoso”, exemplifica, ao classificar a declaração de “verdadeira no abstrato, mas ambígua e confusa”. “Somos todos pecadores. Todos temos ‘dons e qualidades a oferecer’. Mas nossos pecados não são dons. Nada pode mudar o fato de que relações homossexuais são, objetivamente, um grave pecado”, opinou.