Nadando contra a corrente até o último suspiro, David Bowie deixou como legado o surpreendente álbum "Blackstar", um rock sombrio com toques de jazz experimental, que foi lançado na última sexta-feira, dois dias antes de sua morte.
"Não posso revelar tudo" ("I Can't Give Everything Away") canta o ícone na última faixa do derradeiro disco, que foi lançado na sexta-feira passada, no dia em que completou 69 anos.
Sempre misterioso, Bowie não fez campanha nem deu entrevista para promover a obra, que tem como ilustração na capa apenas uma estrela negra num fundo branco, referência ao título do álbum.
Nesse dico, o gosto do inglês pela experimentação o levou a explorar o universo do jazz.
São apenas sete faixas, para 40 minutos pincelados com baterias 'epilépticas', explosões de saxofones e voz de veludo, entre doçura e inquietação.
Como sempre, Bowie não se preocupou em entrar nos moldes formatados da indústria fonográfica, esticando músicas muito além dos três ou quatro músicas de praxe, sem estrutura definida.
O fã das antigas pode reconhecer sonoridades de discos como "Low" (1977) ou "Black Tie White Noise" (1993), que relançou sua carreira depois de uma travessia do deserto na década de 1980.
A faixa-título, "Blackstar", tem dez minutos de duração, e foi escrita para a trilha sonora do série policial franco-britânica "Panthers".
As letras sombrias ("No dia da execução/Apenas as mulheres se ajoelham e sorriem") dão o tom do resto do disco, com mistura de sonoridades, entre o free-jazz, a música oriental e um ambiente de 'missa negra'.
No crepúsculo de sua vida, o astro não procurou emplacar mais um hit, mas seu gosto pelo pop e pelo rock aparece em faixas mais 'acessíveis'.
A introdução de "Lazarus", terceira faixa do álbum, ecoa com o "cold wave" dos anos 80; "Girls Loves Me" lembra até o hip hop, e a guitarra tem grande destaque na última faixa, "I Can't Give You Everything".
No videoclipe de "Lazarus", com várias referências à morte e ao além, Bowie aparece atormentado e com os olhos vendados, deitado em uma cama de hospital. Como o personagem bíblico que dá nome à canção, ele parece transitar entre a vida e a morte.
"Vejam-me aqui em cima, estou nos céus", canta Bowie. "Serei livre como o pássaro azul", antecipa o artista, antes de completar: "por acaso não sou assim?".
O clipe termina com Bowie entrando em um guarda-roupas-sarcófago e fechando a porta.
Há três anos, Bowie tinha escolhido a data de seu aniversário para acabar com uma seca musical de quase uma década, com a canção "Where Are We Now?", um tema melancólico cheio de referências à sua vida em Berlim.
Dois meses depois, "The Next Day", um novo álbum com pitadas de rock e melodias acessíveis, confirmava o retorno do artista influente, silencioso há anos, mas celebrado em uma grande exposição itinerante que recebeu mais de um milhão de visitantes em várias cidades.
Canção para série de TV, comédia musical, aparições estelares como no último álbum de The Arcade Fire... Bowie parecia não querer parar, como nos prolíficos anos 1970 em que multiplicava os disfarces e os personagens, e ditava modismos.
Ecos do passado
"Blackstar", que tem na capa uma enigmática estrela de cinco pontas, se aventura no jazz, com bateria e sax compartilhando o primeiro plano com a inconfundível voz de Bowie, às vezes suave, outras vezes mais grave.
Em sua despedida, o artista esticou e desestruturou seus temas, que superam amplamente o formato padrão de três ou quatro minutos. Também há referências a seus trabalhos anteriores, como o clássico "Low" (1977) ou "Black Tie White Noise" (1993), que tinham relançado Bowie depois de uma difícil década de 1980.
A ideia não era fazer um disco de jazz, mas "um álbum de David Bowie com músicos de jazz que não necessariamente tocaria jazz", explicou à rádio americana NPR Tony Visconti, produtor emblemático do britânico.
"Durante uma ou duas décadas, ele teve na sua banda um músico de jazz importante, Mike Garson, um pianista muito talentoso. Por isso sempre houve um pouco do balanço do jazz nas suas produções anteriores. David conhece bem os acordes do jazz", ressaltou o produtor.
"Partiu de uma ou duas canções para chegar a vários temas e depois a um projeto de álbum completo", disse o saxofonista americano Donny McCaslin, cujo instrumento é onipresente neste álbum do qual também participam o baterista de jazz Mark Guiliana e o músico e produtor James Murphy (ex-LCD Soundsystem).
No final de 2014, os temas "Sue (Or In A Season Of Crime)" e "'Tis A Pity She Was A Whore" antecipavam esta guinada para o jazz. Ambos aparecem em versões rock-jazz entre os sete que compõem o álbum.