Jornal Estado de Minas

Eleição de hoje para a nova Constituinte ameaça lançar a Venezuela no limbo da incerteza


Para se aferrar ao poder, levar adiante a chamada revolução bolivariana e instalar o socialismo do século 21, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, aposta todas as cartas na formação de uma Constituinte. É com ela que o sucessor e afilhado político de Hugo Chávez espera anular a Assembleia Nacional, comandada pela coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD), e retomar o controle do Legislativo. O regime lançou como candidatos nomes do núcleo duro do chavismo, como Diosdado Cabello, número dois do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV); a ex-chanceler Delcy Rodríguez; e a primeira-dama, Cilia Flores. Pelo menos 19,4 milhões de venezuelanos estão aptos a votar hoje, mas os mascarados da “resistência” ameaçam sabotar o processo e tomar as ruas de Caracas e das principais cidades do país. A comunidade internacional promete desconhecer o processo e intensificar as sanções ao Palácio de Miraflores.


Nas eleições de hoje, serão escolhidos 545 delegados, 364 em municípios e 181 entre oito setores da sociedade, violando princípios da representação proporcional estabelecidos pela Constituição. Também não existirá paridade no peso político de cada voto — sua importância dependerá do local de residência do eleitor. Além de o sistema de votação estar repleto de irregularidades, o regime de Maduro ordenou a todos os funcionários públicos comparecer às urnas, sob pena de demissão sumária, e exigiu que os mesmos publiquem nas redes sociais fotos da votação e mensagens alusivas à Constituinte. Famílias carentes que dependem de subsídios do governo sofrerão cortes no fornecimento caso não exerçam o voto.
A MUD denuncia que a reforma da Carta Magna é inconstitucional, por desprezar a consulta popular.


Presidente da Comissão de Política Exterior da Assembleia Nacional, o deputado Luis Florido lembrou que a Constituinte foi rechaçada por 7,6 milhões de venezuelanos no plebiscito de 16 de julho, uma rejeição maior do que o número de votos obtidos por Maduro nas eleições de 2013. “Nós queremos pedir a todos os países que repudiem a Constituinte e que, caso ela se instale, a desconheçam. Que o regime de Maduro não possa solicitar empréstimos no mundo, com o aval dessa Constituinte, nem firmar contratos ou se endividar por meio de bônus assinados pela República”, clamou.


Para Amélia Belisário, deputada pelo partido Primero Justicia, a oposição tem razões jurídicas, políticas e sociais para defender o povo e lutar contra a Constituinte. “A Venezuela sofre de uma escassez de alimentos nunca antes vista. A inflação é altíssima, graças às políticas econômicas do regime, que acabaram com a nossa produção nacional”, disse ao Estado de Minas. Ela explica que o país precisa de respostas claras sobre pontos essenciais: o fim da perseguição; a libertação de presos políticos; o respeito às instituições; a ajuda humanitária; e a realização de eleições gerais, por meio do voto secreto, universal e direto.

Sem credibilidade

Segundo o cientista político José Vicente Carrasquero Aumaitre, professor da Universidad Simón Bolívar (em Caracas), o problema está no fato de que Maduro não fez a convocatória da Constituinte para substituir a Carta Magna de 1999, subscrita por Chávez. “Em nenhum lugar do mundo civilizado, uma minoria se abroga o direito de escrever nova Constituição desconhecendo a vontade da maioria”, alertou à reportagem.

“Com esse processo, o chavismo pretende fechar a Assembleia Nacional e todos os poderes constituídos. O poder constituinte absoluto estará nas mãos de indivíduos que o terão conquistado pela imposição, não pelos votos.” Carrasquero prevê uma participação popular pífia na votação de hoje — na Venezuela, o voto é facultativo. “Tal cenário seria uma clara manifestação de rechaço à Constituinte e faltaria capacidade ética para o seu funcionamento.”


Também em entrevista ao Estado de Minas, Alejandro Rebolledo, um dos 33 novos magistrados do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) nomeados pela Assembleia Nacional, acusou a convocatória da Constituinte de atropelar a Carta Magna de 1999, que estabeleceu os princípios da progressividade dos direitos humanos. “Se você não tinha direitos, mas os adquiriu para votar e responder se concorda com a transformação do Estado, então a Constituinte deve ocorrer. Mas, não houve essa consulta. A discussão sobre a ruptura constitucional por parte do TSJ é sinal da grave crise institucional enfrentada pela Venezuela.”


Os temores de Orlando Vieira-Blanco, cientista político, advogado e colunista do jornal El Universal, são de que a Constituinte institucionalize a anarquia. “Ela vai instaurar um Estado comunal, despojador, improdutivo, alheio ao respeito à propriedade privada; alijado da modernidade e da educação liberal”, adverte. “Não é um processo legitimado pelo povo, mas por uma ditadura corporativa, setorial e discriminatória, a qual vandalizará o país”, advertiu.

Ele concorda que a baixa afluência às urnas aprofundará a crise dentro do PSUV. De acordo com Vieira-Blanco, dar curso à fraude da Constituinte fragilizará ainda mais o poder de Maduro e catalisará o desprendimento de novas facções do oficialismo, civis e militares. “Maduro está em uma armadilha. Eu antecipo momentos muito violentos e críticos para o país. A única coisa que a Constituinte garantirá será uma escalada de violência sem precedentes na Venezuela.”

 

Protestos e mais voos cancelados

 

Lixo em decomposição, escombros e poucos manifestantes: o apelo da oposição venezuelana para manter os bloqueios nas ruas tinha pouca adesão ontem, um dia antes da eleição da polêmica Assembleia Constituinte do presidente Nicolás Maduro. O bairro de Chacao, na zona leste de Caracas, é o epicentro dos protestos, enquanto em outras partes da capital venezuelana o clima era de relativa normalidade. "Eu dormi aqui e permaneço o dia todo. Não vamos sair. Estou aqui porque minha mãe morreu de câncer sem conseguir remédios e eu fiquei na rua", disse Endderson, que preparava uma barricada em Chacao.


O governo americano pediu a seus a seus diplomatas que retirassem suas famílias da Venezuela e o Canadá recomendou a seus cidadãos que deixassem o país. A companhia aérea Avianca cancelou os voos com destino a Caracas, a Air France anunciou a suspensão de hoje a terça-feira, enquanto a Iberia suspendeu os voos de hoje a quarta-feira.
Maduro rejeitou a pressão internacional contra a Constituinte.

Na quarta-feira passada, o governo dos Estados Unidos anunciou sanções a 13 funcionários e militares venezuelanos, incluindo a presidente do CNE, Tibisay Lucena, acusados de "minar a democracia", de atos de violência ou corrupção.


O vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, telefonou ao líder opositor venezuelano Leopoldo López, que está em prisão domiciliar, para reafirmar a promessa do presidente Donald Trump de responder com mais sanções econômicas à formação de uma Constituinte.

 

Ponto de Vista

 

Risco de um Estado comunal
José Vicente Carrasquero Aumaitre,
Professor de ciência política da Universidad Simón Bolívar (em Caracas)

“Com a Constituinte, nós veremos a criação de um Estado comunal. A eleição direta desaparecerá para dar lugar a uma eleição de segundo grau, na qual somente votarão os selecionados pelo partido do governo. Isso representa um retrocesso nos direitos determinados pela Constituição e nos tratados internacionais firmados pela Venezuela. Nós passaremos à propriedade comunal e à propriedade privada mediatizada pelo Estado. O ser humano deixará de ser o centro para se converter em peça do Estado comunal, que tomará as decisões por ele.”

 

O fim do respeito à lei
Orlando Vieira-Blanco,
Cientista político, advogado, assessor da Assembleia Nacional e
colunista do jornal El Universal, de Caracas

“Uma nova Constituição, nascida de um processo fraudulento, trará uma Carta Magna igualmente fraudulenta. Ela se focará em um partido único, no culto à personalidade, em um poder tipo soviético, de baixo para cima. O país será convertido em clivagens territoriais de grupos comunais, onde não impera o respeito à lei, mas a 'reforma revolucionária'. É a possível 'somalização' ou 'africanização' do país. Isso quer dizer, o caos e a violência.

Seria uma Constituição presidencialista, de corte coletivista, onde o Estado é o único proprietário, não apenas dos meios de produção, mas da condição cidadã.”

 

 

 

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