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Estado de Minas QUASE QUATRO DÉCADAS DEPOIS

Ainda paira no Ocidente incompreensão sobre revolução iraniana

Estado de Minas inicia neste domingo uma série de oito reportagens de Bertha Maakaroun sobre a primeira teocracia do mundo contemporâneo


postado em 24/12/2017 11:25 / atualizado em 24/12/2017 12:12

Milênios da história, inúmeros sítios listados pela Unesco, como a necrópole Nash-e Rostam, dos reis aquemênidas (foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )
Milênios da história, inúmeros sítios listados pela Unesco, como a necrópole Nash-e Rostam, dos reis aquemênidas (foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )

Às vésperas dos 40 anos da revolução de 1979, que transformou o Irã na primeira teocracia do mundo contemporâneo, o  Ocidente ainda lê esse país que trouxe a religião ao núcleo central da arena política, sob o olhar dos primeiros anos da revolta, quando o chamado clero fundamentalista liderado por aiatolá Khomeini implantou a República Islâmica e as medidas antisseculares. Foi uma reação aos anos da chamada “Revolução Branca” do xá Mohammad Reza Pahlavi. Proibição de consumo de bebidas alcoólicas, tutela feminina pelo patriarcado, mulheres obrigadas ao uso do hijab (lenço sobre os cabelos) para não “incitar” o desejo masculino, condenação à morte de ateus, homossexuais e esposas infiéis, tentativa de destruição de sítios arqueológicos... Esse evento, que para alguns autores marca o fim da era moderna, mudou não apenas a face do Oriente Médio e Próximo, mas a Europa e as Américas.


Mas esse poder teocrático, que se apoiou inicialmente nos militares e em suas milícias islâmicas, ao final da guerra contra o Iraque (1980-1988) vem gradativamente perdendo espaço. O Irã vem se abrindo à participação civil, com a consolidação de seu Parlamento e da eleição para presidente da República, em que pese este ainda governe sob a tutela clerical, que também “aprova” as listas de parlamentares candidatos. Ganharam terreno os chamados reformistas, mais abertos à modernização da sociedade e ao diálogo com o Ocidente.

Mesmo que a ameaça do fundamentalismo-conservador religioso ganhe o mundo justo por esse aspecto caricato da Revolução Iraniana, hoje ela é infinitamente menor no Irã do que, por exemplo, em países como a Arábia Saudita. A ameaça fundamentalista sobre o Irã equivale, atualmente, ao risco que enfrentam países como os Estados Unidos e o Brasil, ambos afetados pelo acelerado crescimento dos movimentos religiosos neopentecostais, que avançam principalmente nas classes mais pobres.

À entrada de Persépolis, joia e testemunha do maior império da Antiguidade, incendiada por Alexandre da Macedônia (foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )
À entrada de Persépolis, joia e testemunha do maior império da Antiguidade, incendiada por Alexandre da Macedônia (foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )

Velho preconceito O preconceito ao Irã não é novo. A cultura ocidental sempre teve para com essa civilização motivos de tensão e crítica permanente. Os gregos iniciaram essa tradição com Heródoto, denominado Pai da História, que tratou de batizar as guerras greco-persas de “médicas”. O maior império da Antiguidade aparece retratado apenas em suas expedições punitivas aos gregos europeus, mas jamais pelo conjunto da obra – ou seja, as conquistas persas das cidades gregas na Jônia.

Quando Alexandre da Macedônia invadiu a Pérsia, dissolvendo o Império Aquemênida, em 330 a.C., as suas histórias correram o mundo, depreciando os “parsis”, enaltecendo os helênicos-macedônios. Durante o Império Selêucida (312 a.C. –  63 a.C.) iniciado por uma dinastia helênica do general Alexandre Seleuco, os persas foram arrastados a um conflito com Roma e, novamente, objeto de depreciação. Da mesma forma, a invasão árabe e muçulmana na Pérsia, em 633, levou europeus e toda a cristandade a jogar árabes e persas na vala comum do islamismo, tratando-os como o “invasor” a ser contido.

Em 1979, ao amanhecer da Revolução Iraniana, essa adquiriu rapidamente um caráter antinorte-americano e anti-ocidental, em contraposição à crescente influência desses países no Irã, principalmente a partir de seu apoio ao golpe de Estado, em 1953. Golpe que derrubou no Irã o governo nacionalista e eleito de Mosaddeq, naquilo que nos arquivos da CIA ficou conhecido como “Operação Ajax”. De fato, o golpe de 1953 e as raízes da Revolução Iraniana de 1979 estão entrelaçados, não só pela ditadura monárquica que se iniciou e terminou respectivamente nesses dois momentos, como pelo motivo principal que lhe empresta sentido, a questão da exploração e da comercialização do petróleo.
Palácio de Niavaran, residência oficial do último xá(foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )
Palácio de Niavaran, residência oficial do último xá (foto: Bertha Maakaroun/EM/D.A Press )

Quase cinco décadas depois da revolta do sagrado, o Irã se livrou da condição de “quintal” de duas grandes potências europeias  a Rússia e depois URSS ao norte e a Inglaterra, ao sul  chegando a ser ocupado por ambas durante a Segunda Guerra Mundial. Desde o início da Dinastia Cajar (1789-1925) e depois Pahlavi (1925-1979) era motivo de ironias e piadas nos centros europeus do poder. Foram dinastias que viveram ao sabor dos humores de seus patronos. Exemplo disso foi o último xá do Irã, Mohammad Reza Pahlavi, entronizado depois que seu pai, Reza Xá Pahlavi, acusado pelas tropas soviéticas e inglesas de simpatizar-se com o nazismo, foi por elas forçado a abdicar.

Em todos os recentes conflitos no Oriente Médio, o Irã se posicionou em contraponto às forças regressistas que ali atuam. Apoiou o combate ao Exército Islâmico na Síria e no Iraque, atuou, por meio do Hezbollah, contra Israel na invasão ao Líbano e hoje é o principal país na rivalidade regional aos ultraconservadores da Arábia Saudita.

Mesmo a situação das mulheres no Irã, embora claramente discriminadas e inferiorizadas, metidas em negros xadors que lhes tomam a identidade, respondem por 60% dos 2 milhões de alunos universitários no país. No campo de desenvolvimento tecnológico, o Irã controla todo o ciclo nuclear, é um dos poucos a produzir todo o seu arsenal militar – desde aviões, jatos, mísseis, tanques e até o seu programa espacial. Além disso, está entre as 20 nações com mais pesquisa e desenvolvimento em nanotecnologia, química, ciências da computação, e apresenta grande desempenho no campo das células-tronco.

No campo econômico, houve avanços. Em 1980, um ano após a revolução, o Irã detinha um Produto Interno Bruto (PIB) estimado com Paridade de Poder de Compra (PPC), segundo o FMI, de US$ 115 bilhões; em 2015, foi a US$ 1,382 trilhão, ocupando a 19ª posição mundial. Se o PIB nominal era US$ 94 bilhões em 1980, em 2014, registrava US$ 403 bilhões.

Durante esse período, o Irã atravessou uma guerra contra o Iraque que praticamente destruiu as suas principais cidades ao Sul do país, além de danificar boa parte de sua infraestrutura petrolífera, de portos e estradas, ainda enfrentando um boicote econômico das principais economias mundiais. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH - 2015) foi de 0,774, já considerado elevado e maior que o brasileiro, de 0,754, no mesmo ano.

É fato que o Irã também luta hoje com contradições derivadas de seu desenvolvimento recente, em que as tradições nas quais se ancorou para rejeitar fortemente o domínio econômico externo vão gradativamente se transformando em um estorvo para as suas camadas e classes sociais mais educadas e refinadas. As leis e as instituições – leia-se Exército e clero tradicionalista –, que foram a ossatura para o país transitar da situação anterior para a atual, vão se tornando obsoletas face à nova realidade que vai se impondo. É um preço a se pagar pelo sucesso e que já se fez sentir como na recente Revolução Verde, na qual se chocam o Irã que nasce e o antigo que não quer deixar de existir. O perigo que corre é de novamente as forças que sinalizam um reencontro com valores que deveriam ser universais – como direitos humanos e civis – voltarem as suas costas ao grosso da população, transformando esse movimento de elite em algo que foi a “Revolução Branca” de Reza Pahlavi: um encontro com as trevas.

 

LEIA AMANHÃ: Torres do Silêncio (Dakhmas), em Yazd, onde zoroastrianos promoviam o ritual da entrega de seus mortos

 


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