Por 38 votos contra, 31 a favor e duas abstenções, o Senado da Argentina rejeitou, nesta quinta-feira (9), o projeto de legalização do aborto, ao final de cinco meses de um intenso e acalorado debate que se estendeu do Parlamento às ruas.
Com a rejeição do Senado, os defensores da descriminalização do aborto terão de esperar pelo menos um ano para apresentar um novo projeto de lei.
Aprovada em primeira discussão pela Câmara dos Deputados em 14 de junho passado, a proposta que teria permitido a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação precisava da ratificação do Senado para se tornar lei.
A decisão foi recebida com uma explosão de alegria pelos manifestantes contrários ao texto, os quais estavam desde ontem do lado de fora do Congresso, junto com a multidão pró-aborto.
"Essa votação nos permite um tempo de reflexão para fazer propostas melhores e humanistas para as mulheres vulneráveis. Não há vencedores nem vencidos", disse à AFP, em tom conciliador, Alberto Bochatey, arcebispo de La Plata e responsável pela Conferência Episcopal para o diálogo com o Congresso neste tema.
Já a Anistia Internacional considerou que a decisão "representa a perda de uma oportunidade histórica para o exercício dos direitos humanos de mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar".
Entre os que apoiavam o "sim", reconhecidos por seus lenços verdes, a reação oscilou entre tristeza e raiva. Alguns jogaram pedras e queimaram latas de lixo, enquanto a Polícia usava jatos d'água e gás lacrimogêneo para dissipar a multidão.
Os incidentes, isolados, deixaram sete detidos, segundo a Polícia.
"Nunca acreditamos que chegaríamos até aqui. E ter chegado tão perto e deixar que isso nos escape das mãos dá muita raiva e indignação", disse à AFP Mailén, uma manifestante de 24 anos.
Cedo ou tarde
Os promotores da legalização do aborto garantem que não se darão por vencidos.
"O futuro não pertence ao 'não'. Cedo ou tarde, as mulheres terão a resposta normativa de que precisam. Cedo ou tarde, o 'sim' vai ganhar este debate", disse o senador Miguel Angel Pichetto, chefe do bloco do Partido Justicialista (peronista) em seu discurso de encerramento.
Setores a favor da lei avaliam convocar um referendo.
"Quando há uma Câmara que opina de uma maneira e outra que pensa de outra maneira, caso seja rejeitado, isso mostra que a representação do povo está dividida. Isso faz necessário, talvez, um sistema de decisão de democracia direta previsto pela Constituição, por meio da consulta vinculante. É possível que proponhamos isso", antecipou Daniel Lipovetzky, deputado do governista Cambiemos, encarregado do debate na Câmara baixa.
Terra do papa Francisco, a Argentina tem grande influência da Igreja católica. Em 2010, porém, tornou-se pioneira na região, ao aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Na América Latina, o aborto é legal apenas em Cuba, desde 1965, e no Uruguai, desde 2012. Também é permitido na Cidade do México.
Com a rejeição do Senado, as únicas possibilidades de se submeter a um aborto na Argentina continuarão sendo em caso de risco de vida da mulher, ou quando a gravidez for fruto de estupro.
Sem projeto alternativo
Na sessão, interveio a ex-presidente e atual senadora Cristina Kirchner, em sua primeira aparição pública em semanas.
Ao defender a legalização do aborto, Cristina declarou que "se pode concordar, ou não", mas não é possível "rejeitar o projeto sem propor qualquer alternativa e a situação permanecer a mesma", com milhares de abortos clandestinos. Segundo uma ONG, são cerca de 500 mil ao ano.
Kirchner, que durante seus dois mandatos (2007-2015) se recusou a apresentar o projeto para descriminalizar o aborto, revelou ao Senado que "foram as milhares de jovens que ocuparam as ruas que a fizeram mudar de opinião".
Promotor do debate, o presidente Mauricio Macri disse que "não importa qual seja o resultado, hoje ganhará a democracia".
Vários senadores a favor da proposta criticaram que não se tenha promovido a iniciativa com mais força.
Verdes versus celestes
Durante todo dia, milhares de manifestantes a favor da legalização, identificados com lenços verdes, e os pró-vida, com lenço azul, mantiveram-se do lado de fora do Congresso.
"Isso não é 'aborto sim, aborto não'. É 'aborto legal ou aborto clandestino'", afirmou Adriana Saucedo, de 57 anos, referindo-se a um dos lemas da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, lançada há 15 anos.
Entre os "celestes", o padre Federico Berruete, de 35, comemorou o que considerou uma "grande demonstração de fé".
"Muita gente se mobilizou para um país mais humano. É preciso defender a criança por nascer", afirmou.
(Por Nina NEGRON)