O enredo parece digno de um tango argentino. De um lado, a ex-presidente acossada por escândalos de corrupção, que se aproveita da deterioração econômica para tentar voltar ao poder, mesmo à sombra de um advogado. De outro, o chefe de Estado que tenta subverter o pessimismo, contrariar quase todas as pesquisas e pavimentar o caminho para mais quatro anos à frente da Casa Rosada, também se aliando a um advogado. As chapas Alberto Fernández-Cristina Fernández de Kirchner e Mauricio Macri-Miguel Ángel Pichetto serão colocadas à prova pela primeira vez hoje, nas Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso).
O direitista Macri aposta em evitar “um retorno ao passado” para garantir a direita no controle da Argentina, mas precisará convencer o eleitorado de que o seu populismo é a melhor solução ante o peronismo. “Neste domingo, 11 de agosto, necessito que nos acompanhem com seu voto para que sigamos em frente. Para demonstrar que nós, argentinos, juntos, somos imparáveis. E nós faremos por nossos filhos, por nossos netos, por nós mesmos e porque amamos este país”, declarou Macri em seu último discurso antes das Paso, em Córdoba.
“Que as pessoas voltem a ser felizes, a ter trabalho, que as crianças vão ao colégio para estudar e não para comer, que os aposentados cheguem à farmácia com a receita completa. No primeiro semestre de goveno, mudaremos a Argentina”, prometeu Alberto Fernández, acompanhado de Cristina, no encerramento da campanha da coligação Frente de Todos, também em Córdoba. Miguel De Luca, cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA), explicou ao Estado de Minas que as Paso de hoje são importantes, pois permitirão apreciar o índice de apoio eleitoral dos distintos partidos e candidatos para as eleições gerais de 27 de outubro. “Elas funcionam como uma fotografia das preferências políticas dos cidadãos, meses antes das eleições presidenciais. Também permitem, tanto aos partidos quanto aos eleitores, recalcular as estratégias e apoios antes do pleito de outubro.”
Sem opções De acordo com Amilcar Salas Orono, cientista político e professor em várias universidades federais da Argentina, os principais espaços competitivos — as chapas Frente de Todos, de Alberto e Cristina, e Juntos por el Cambio, de Macri e Pichetto — concentram quase 80% da preferência dos 33,8 milhões de eleitores argentinos. “Como não existem opções sólidas a essas duas forças, em vez de serem uma instância de seleção intrapartidária, as Paso se transformaram praticamente em uma nova eleição, e isso é percebido pelos próprios cidadãos”, disse à reportagem.
Orono admite que há uma certa curiosidade sobre como será a resposta de Macri nas urnas. “A situação geral do país é muito ruim, o que deve provocar profundas complicações para o candidato. No entanto, uma das qualidades do macrismo como espaço político está no fato de ele ter desenvolvido toda uma maquinaria eleitoral — de interpelação das redes sociais, dos meios de comunicação, da propaganda e de intervenções territoriais. Esse mecanismo se mostrou bastante exitoso em outras oportunidades”, comentou. Ele acredita que Macri aposta em uma campanha eleitoral semelhante àquela do presidente Jair Bolsonaro.
Turnos Por sua vez, o também cientista político Fernando Domínguez Sardou, professor da Pontifícia Universidad Católica Argentina (em Buenos Aires), entende que as Paso ajudarão a determinar os rumos das eleições de outubro. Ele afirmou que o sistema eleitoral argentino, na teoria, se compõe de três turnos: eleições primárias (Paso), eleições gerais e o segundo turno das presidenciais.
“Como os pretensos candidatos e os eleitores estão obrigados a participar, a votação de hoje se assemelha a uma ‘grande pesquisa’. As primárias brindam com informação quase perfeita, tanto para partidos quanto para o eleitorado, e podem reordenar as preferências dos votantes para as eleições gerais. Nesse sentido, podem ajudar a contribuir com os rumos da votação de outubro.”
Sardou disse não haver dúvidas da polarização da campanha deste ano. Ele acha provável, ainda que não seja uma previsão necessariamente segura, que Alberto Fernández se imponha nas Paso. “Isso não implica vitória em outubro. Em qualquer cenário, a Frente de Todos, dele e de Cristina, será uma das duas principais forças políticas nacionais.”
Saiba mais - Consulta obrigatória
Durante as Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso) não há cargos em disputa. Na realidade, elegem-se pessoas que ocuparão as candidaturas durante as eleições gerais de outubro. De acordo com o cientista político Fernando Domínguez Sardou, em âmbito nacional e em um importante número de províncias, incluindo a de Buenos Aires, as regras são similares. Nas eleições primárias, estão obrigados a competir todos os partidos que desejarem disputar o pleito de outubro. Para ter a participação credenciada, o candidato precisa obter 1,5% dos votos válidos. Sardou explica que todos os cidadãos estão obrigados a votar, assim como nas eleições gerais — durante as quais serão escolhidos presidente e vice, 24 senadores (provenientes de sete províncias e da Cidade Autônoma de Buenos Aires) e metade da Câmara dos Deputados. Miguel De Luca, cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA), acrescenta que, além dos candidatos a presidente e vice, serão eleitos os postuladores a senadores nacionais (federais) em oito províncias (o Senado se renova em um terço a cada dois anos). Quatro províncias votarão para governador, para legisladores e para intendentes, incluindo as de Buenos Aires, Catamarca e La Rioja, além da Cidade Autônoma de Buenos Aires. Como a província de Buenos Aires concentra quase a metade do eleitorado de toda a Argentina, ela transforma as Paso numa espécie de termômetro para as eleições presidenciais.