Jornal Estado de Minas

As lições da Itália na guerra contra o novo coronavírus

São bastante conhecidos os sérios erros cometidos logo no início da pandemia de COVID19 -na Itália. Apesar de ter sido o primeiro país na Europa a controlar a entrada de pessoas nos aeroportos e a banir voos da China, tanto a população quanto as autoridades não estavam atentas à real dimensão da pandemia de COVID-19 nem aos altos riscos de contágio.


O exemplo talvez mais conhecido fora da Itália foi o do prefeito de Milão, Beppe Sala, que teve de vir a público pedir desculpas durante uma entrevista na televisão por ter apoiado nas mídias sociais, em fevereiro, a campanha #Milanononseferma (#Milãonãopara) quando já se sabia da contaminação comunitária, mas o número de contaminados ainda era baixo.

Somente na cidade de Milão, desde fevereiro, foram registrados 6.709 casos positivos para o vírus Sars-Cov-2, que causa a COVID-19, e em toda a região da Lombardia já são 66.971 casos, segundo dados de 20 de abril da Região da Lombardia/ Proteção Civil.

No entanto, não foi somente o prefeito de Milão quem errou, muitos outros políticos populares, de vários partidos, também subestimaram, no primeiro momento, o impacto do coronavírus no sistema de saúde do país.



Outro importante erro que especialistas italianos apontam para o aumento vertiginoso de casos é o fato de que os próprios hospitais possam ter sido foco de disseminação da doença, uma vez que em fevereiro ainda não se realizava o protocolo de identificação do vírus.

o grande número de profissionais de saúde contaminados até o momento é um indicador, para eles, dessa falta de preparo. Além disso, a demora em fazer mais testes na população, especialmente nas cidades mais atingidas, quando o crescimento do contágio era exponencial, também pode ter custado muitas vidas, como apontou o físico e ex-reitor da Universidade de Trento, Davide Bassi, em entrevista ao Corriere della Sera.

Como jornalista e pesquisadora que vive na Itália durante essa pandemia, eu a vi surgir e percebi as alterações na compreensão pública sobre como lidar com a situação. Por isso, preciso dizer que, passadas as primeiras semanas da emergência que ainda castiga a Região Norte do país, é possível observar como a Itália conseguiu identificar os erros cometidos e, em consequência, o governo mudou as políticas públicas e os cidadãos mudaram de comportamento, passando a compreender, coletivamente, o que se entende hoje como uma guerra contra um inimigo invisível.



Na história das sociedades, muitas vezes os erros podem ser transformados em lições, o que de fato tem ocorrido na Itália. E, assim, enumero aqui cinco das principais lições que resultam da expe- riência italiana no combate ainda em curso à pandemia da COVID-19:

1. Fechar imediatamente escolas e universidades na Lombardia, após a identificação do primeiro caso registrado na região, em 21 de fevereiro, e o fechamento completo em todo o país até que os números de contaminação baixem

O professor Luca Richeldi, por exemplo, do Comitê Técnico Científico, órgão consultivo da Proteção Civil, que reúne renomados especialistas e gestores da administração pública, reconheceu, durante coletiva à imprensa italiana em 29 de março, que o vírus já circulava na Itália desde janeiro, e reafirmou a importância da medida de fechamento das escolas e universidades assim que foi identificado o primeiro caso comunitário, na cidade de Codogno. Para ele, com esta medida, foi possível ter salvado três quartos da Itália, em especial o Centro-Sul, de uma difusão do vírus semelhante à do Norte do país. Para entender a situação, é preciso considerar que muitos estudantes e professores do Sul da Itália frequentam ou trabalham nas escolas e universidades do Norte. Até este momento, escolas e universidades de toda a Itália continuam fechadas, com cursos sendo realizados de forma on-line, e somente serão abertas depois que os índices de contaminação baixarem. 


2. Decidir o que fazer após ouvir cientistas, médicos e outros especialistas da saúde

As decisões das autoridades de decretar as zonas vermelhas (fechamento das primeiras cidades atingidas), implantar o estado de emergência, fechar completamente o país (lockdown) e de várias outras ações de combate à COVID-19, tanto em nível nacional quanto regional e local, foram realizadas depois de ouvidos os setores envolvidos. Especialistas reconhecidos em suas áreas de atuação foram contratados como consultores de regiões. E as decisões relativas à reabertura das atividades somente são tomadas após ouvir vários setores da sociedade italiana, em especial o que dizem os responsáveis pelo monitoramento das estatísticas relativas ao contágio. Além disso, virologistas e epidemiologistas importantes contam com espaço garantido na mídia, fazem parte da programação cotidiana nas televisões, e as pesquisas científicas realizadas pelas universidades italianas e europeias recebem atenção tanto das autoridades quanto da população.


3. Dar transparência no trato das informações sobre a epidemia

Desde o início, a Proteção Civil italiana tem divulgado as estatísticas relacionadas ao número de contaminados, internados em hospital, recuperados e falecidos pela doença. Esses registros são monitorados diariamente em todas as prefeituras das 20 regiões do país e apresentados em coletiva à imprensa, com divulgação direta nas mídias sociais. Os números são analisados e debatidos amplamente no espaço público à luz de relatórios, comparações com pesquisas internacionais de ponta e com a opinião de especialistas de múltiplas áreas. Assim, é possível saber as previsões sobre o andamento da epidemia e os próximos passos da ação governamental. Por exemplo, já se sabe que enquanto a transmissão não seja inferior de um para um (ou seja, de uma pessoa para menos de uma pessoa do ponto de vista estatístico), a maior parte das atividades públicas provavelmente não será reaberta. Além disso, também está definido que o retorno às atividades no pós-emergência na Itália será escalonado e dependerá do monitoramento do número de contágios.




4. Realizar campanhas para informar e convencer a população a ficar em casa por meio do esforço conjunto de governo, empresas, mídia e sociedade civil 

A partir do momento em que o governo do primeiro-ministro Giuseppe Conte decretou o lockdown, foi possível observar um esforço maior pela unidade do país e o reconhecimento da gravidade da situação. A campanha #iorestoacasa (#euficoemcasa) é o exemplo mais conhecido. A campanha nasceu espontânea nas mídias sociais e foi incorporada institucionalmente para fortalecer as ações de comunicação de combate ao vírus. É impossível assistir à televisão ou escutar rádio ou ainda navegar na internet na Itália atualmente sem encontrar informações sobre a pandemia, conhecer os protocolos de segurança, as orientações governamentais sobre como agir, e se deparar com os pronunciamentos oficiais tanto do primeiro-ministro quanto do presidente da República conclamando à união e à defesa do país nesta guerra contra a pandemia. Várias grandes empresas e personalidades públicas, inclusive times e jogadores de futebol, fizeram doações aos hospitais das cidades atingidas ou à Proteção Civil. São também inúmeras as ações locais da rede de proteção e apoio social aos grupos mais vulneráveis na Itália, especialmente os idosos e os mais pobres.


5. Ficar em casa em nome do forte senso de comunidade e do respeito aos profissionais que estão na linha de frente contra a doença

Depois que ficou evidente para a maioria da população que a pandemia da COVID-19 é um perigo real para o sistema de saúde pública e potencialmente danoso para as pessoas, tanto as autoridades quanto os italianos compreenderam que só conseguiriam vencer a guerra contra o vírus Sars-Cov-2 se todos se envolvessem diretamente nela e fizessem a sua parte. Ficar em casa, portanto, passou a ser entendido não como uma obrigação qualquer ou uma inconveniente decisão contra a economia, mas foi assumido como uma obrigação do Estado em defesa de todos os italianos, e uma escolha ética dos mais saudáveis em nome do cuidado em relação à população vulnerável. Médicos, enfermeiros, outros profissionais da área da saúde, e ainda trabalhadores dos serviços essenciais, como caixas de supermercado e de farmácias, recebem o reconhecimento diariamente da população, seja por meio de homenagens, seja por meio de ajuda direta (entrega de comida gratuita, apoio psicológico, etc.). A renúncia ao estilo de vida e aos hábitos sociais tão caros aos italianos é um preço bastante alto que a maioria se dispôs finalmente a pagar, não só por medo da doença – até 20 de abril foram registrados 181.228 casos positivos por Covid-19  e 24.114 mortes na Itália –, mas também por amor à sua comunidade e ao seu país.
 
Por fim, após quase dois meses de emergência, a Itália ainda enfrenta uma situação difícil do ponto de vista sanitário e econômico. Os números de contaminados ainda não baixaram o suficiente em todas as regiões para se sair imediatamente do lockdown, os hospitais das cidades mais atingidas ainda estão sob pressão e já se sabe que a recessão econômica será forte. Há denúncias de quem não está cumprindo o isolamento e notícias de tensões sociais, especialmente no Sul do país. Sendo assim, não se sabe, ainda, com precisão, quando a vida voltará ao normal, se é que voltará ao que conhecemos anteriormente como normal. O que se sabe, ao certo, é que vidas foram perdidas quando isso poderia ter sido evitado – que fiquem as lições aprendidas. Sabe-se também que todos os que vivem o drama dessa pandemia sairão muito diferentes desta experiência.


Será fundamental que, no Brasil, as principais lições italianas, assim como de outros países, sirvam de referência para manter ou ampliar, no contexto brasileiro, iniciativas que efetivamente gerem resultados na redução da curva de contágio, para que evitemos, com todas nossas forças e senso de imperiosa responsabilidade histórica, o pior cenário de uma tragédia anunciada.


*Jornalista, professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, pós-doutoranda na Università Degli Studi di Milano, Itália