Jornal Estado de Minas

VIOLÊNCIA URBANA

Favelas do Rio não têm paz, nem mesmo na pandemia

Mãe e filha caminham rapidamente no sentido contrário ao de policiais militares na Vila Kenedy, no Rio de Janeiro (foto: CARL DE SOUZA / AFP)

Os moradores das favelas do Rio de Janeiro lutam para se defender do novo coronavírus, da crise econômica e... dos tiros.


Em meio à pandemia, as operações policiais na "guerra" contra o narcotráfico continuam a tirar vidas e frequentemente interrompem o trabalho humanitário nas comunidades, como a distribuição de alimentos e de produtos de higiene, além das campanhas de prevenção.



Somente em abril, a Polícia do Estado do Rio de Janeiro matou 177 pessoas, 43% a mais do que em abril de 2019, um ano recorde em termos de mortes por agentes do estado: 1.810. Os dados foram divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP).


E, em maio, as operações com consequências fatais continuaram.


"Se não morrer de vírus, ou de fome, te matarão com tiros de fuzil, em nome de uma segurança pública que não inclui nosso povo", desabafou o ativista Raull Santiago em suas redes sociais em 15 de maio, quando 13 pessoas foram mortas uma única operação policial no Complexo do Alemão, zona norte do Rio.


A polícia, que apreendeu oito fuzis, afirma que os mortos eram traficantes que os atacaram com armas pesadas.

 


Jovem de 14 anos baleado dentro de casa 


Apenas três dias depois, outra morte em uma operação policial ganhou as manchetes: João Pedro Mattos Pinto, um negro de 14 anos, foi baleado na casa de seu avô durante uma operação da Polícia Federal (PF) e agentes de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro em São Gonçalo, cidade da região metropolitana.



Segundo os familiares, os agentes invadiram a residência - onde João Pedro brincava com os primos -, atirando e lançando granadas, supostamente em perseguição a criminosos.


O tiroteio deixou mais de 70 buracos de bala nas paredes, janelas e eletrodomésticos.


A polícia levou o garoto, supostamente para prestar socorro, mas não informou seu paradeiro à família, que recuperou seu corpo mais de 17 horas depois, já no necrotério.


"O governo do estado precisa ter coerência: pede o isolamento social, mas ao mesmo tempo envia o seu braço armado para continuar essas operações, causando aglomeração e movimentos de tensão nessas comunidades", disse à AFP João Luís Silva, membro da ONG Rio de Paz, que estava na casa onde o menino foi baleado e acompanhou a família no funeral, do qual participaram dezenas de pessoas.



Outros dois jovens negros foram mortos a tiros durante ações policiais nas favelas da Cidade de Deus e da Providência na semana passada, enquanto ONGs locais distribuíam cestas básicas.


Como em muitos outros casos, os policiais alegam que responderam ao ataque de criminosos.


Pelo menos cinco ações sociais foram interrompidas por tiroteios entre 28 de abril e 21 de maio, de acordo com a plataforma Fogo Cruzado, que coleta informações sobre tiroteios na cidade.


O governador Wilson Witzel - criticado por defensores dos direitos humanos por apoiar o uso da força policial mortal - lamentou a morte do adolescente João Pedro e prometeu uma investigação para "responsabilizar os culpados".


Ele também prometeu "ampliar o diálogo" entre a polícia e os líderes comunitários "para evitar a realização de operações de apreensão, ou ações de Inteligência, quando houver grupos que promovam ações sociais e serviços humanitários".




Política de segurança 'fracassada' 


Para líderes comunitários e estudiosos de segurança do Rio, o problema tem raízes mais profundas.


"A polícia do Rio de Janeiro está insistindo em um tipo de ação de segurança pública que não só é tecnicamente errada e fracassada, mas é muito letal, muito perigosa e muito dolorosa para os moradores da favela e a vida da cidade", afirma a coordenadora geral da Rede de Observatórios de Segurança Pública, Sílvia Ramos.


Para a pesquisadora, este tipo de abordagem que não prioriza o trabalho de Inteligência, "não enfraquece os grupos armados enraizados nas favelas do Rio de Janeiro há muitos anos, pelo contrário, muito frequentemente, depois dessas operações, quando a polícia sai, esses grupos se fortalecem, compram mais armas, mais munições. Impõem seu regime de injustiça e opressão aos moradores".


Isto acaba "brutalizando" a polícia - que também sofre com altos níveis de corrupção em suas fileiras - e quando entra nas favelas "dispara para matar", tirando a vida de criminosos que deveriam ser presos - e não executados -, assim como de inocentes, destaca Ramos.


"Não vamos ver mudanças na política de segurança do Rio de Janeiro enquanto acreditarmos que as 1.810 mortes, se são de criminosos, são aceitáveis", alerta.