Popularizada desde o início da pandemia pelo médico francês Didier Raoult como um tratamento potencial contra a COVID-19, a hidroxicloroquina é objeto de crescente controvérsia científica e política.
O presidente dos EUA, Donald Trump, alegou tomá-la como uma medida preventiva, enquanto o governo brasileiro de Jair Bolsonaro recomenda a substância para tratar pacientes com sintomas leves, apesar de não haver consenso científico sobre sua eficácia.
A hidroxicloroquina é, geralmente, prescrita para tratar doenças como o lúpus.
Publicado em 22 de maio na prestigiada revista médica, o estudo se baseia em dados de quase 96.000 pacientes internados entre dezembro e abril em 671 hospitais em todo mundo e compara a evolução daqueles que receberam esse tratamento e dos que não receberam.
Seus autores concluíram que a hidroxicloroquina não é apenas ineficaz, como também aumenta o risco de morte entre os pacientes com COVID-19.
À luz desse estudo, dirigido pelo doutor Mandeep Mehra, diretor-executivo do Brigham and Women's Hospital Center for Advanced Heart Disease, em Boston, a OMS decidiu suspender temporariamente os ensaios clínicos com hidroxicloroquina em vários países.
Além disso, o projeto europeu Discovery suspendeu a inclusão de novos pacientes no teste com essa molécula, e a França decidiu, esta semana, proibir seu uso em hospitais. Até então, o medicamento podia ser administrado em casos graves.
Nos últimos dias, porém, um número crescente de cientistas expressou dúvidas sobre a confiabilidade do estudo.
O impacto deste trabalho "levou muitos pesquisadores ao redor do mundo a examinar minuciosamente a publicação", a cargo da Surgisphere, escreveram os autores da carta aberta divulgada na quinta-feira.
"Esta revisão levantou preocupações sobre a metodologia e sobre a integridade dos dados", enfatizam, detalhando uma longa lista de pontos problemáticos, que vão da recusa dos autores a darem acesso a informações de base à ausência de uma "revisão ética".
Os dados são da Surgisphere, uma empresa de análise de dados de saúde sediada nos EUA.
Segundo o jornal britânico "The Guardian", seu presidente, Sapan Desai, reconheceu ter classificado erroneamente 73 mortes na Austrália, quando deveriam ter sido contadas na Ásia.
Devido à "considerável preocupação" que o estudo suscitou "entre pacientes e participantes" nos ensaios clínicos, os signatários da carta pedem à OMS, ou a uma outra instituição "independente e respeitada", a criação de um grupo para analisar as conclusões deste trabalho de forma independente.
Questionada sobre o tema, a OMS disse nesta sexta-feira que a suspensão dos testes é apenas "temporária" e que seus especialistas darão sua "opinião final" sobre a hidroxicloroquina após examinarem outros elementos, provavelmente em meados de junho.
O periódico "The Lancet" disse à AFP que transmitiu todas essas perguntas aos autores do estudo.
"Eles trabalham para responder aos problemas destacados", apontou.
Os signatários desta carta aberta incluem médicos e pesquisadores de todo mundo - de Harvard à Imperial College London.
"Tenho sérias dúvidas sobre os benefícios de um tratamento com cloroquina/hidroxicloroquina contra a COVID-19 (...), mas não podemos questionar a integridade de uma investigação apenas quando ela não coincide com nossas ideias preconcebidas", reagiu no Twitter o doutor François Balloux, da University College, de Londres.
Entre os signatários também está Philippe Parola, colaborador do médico francês Didier Raoult, que, com sua promoção da hidroxicloroquina desde o início da pandemia, contribuiu amplamente para popularizar a molécula.
Outros cientistas expressaram preocupação com o impacto que essa controvérsia pode ter na ciência, usando as hashtags: "#Lancetgate" e "#whats_with_hcq_lancet_paper".
"Se (o estudo) for uma fraude, isso afetará a confiança nos cientistas de maneira duradoura", alertou Gilbert Deray, do hospital parisiense de Pitié-Salpêtrière.