Durante décadas, os Estados Unidos lançaram as bases das políticas econômicas que o resto do mundo acabaria, mais cedo ou mais tarde, por seguir.
Em 1989, nascia na capital americana o chamado Consenso de Washington, que tinha por premissa que a economia capitalista de qualquer país só cresceria se garantisse a adoção de medidas como redução de gastos públicos, abertura comercial, desregulamentação e câmbio flutuante.
E embora tenha sido atualizado e revisitado, é esse compêndio de regras que norteia até hoje, por exemplo, a avaliação do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre as mais diversas economias ao redor do mundo.
As eleições americanas de 2020, no entanto, mostram que, no berço dessas ideias, elas foram abandonadas. Ao menos é o que demonstram os programas econômicos dos dois presidenciáveis — o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump — que concorrem à Casa Branca na terça-feira (03/11).
Mais do que isso, ambos trouxeram de volta para o centro de seus planos econômicos uma ideia que foi a tônica dos governos do Brasil, e da América Latina, nas décadas de 1960 e 1970 - e que recebia também o endosso da esquerda — a chamada política de substituição de importações.
O que é substituição de importações?
Substituição de importações é nome que se dá a um conjunto de medidas econômicas que tentavam levar os países, como o Brasil, a produzir os bens e produtos que os cidadãos queriam comprar, em vez de importá-los.
O país fazia isso por meio de intervenção pesada do Estado na economia: o governo sobretaxava os produtos estrangeiros — para torná-los mais caros e menos atraentes para os brasileiros — ao mesmo tempo em que subsidiava a atividade de vários setores nacionais e chegava a investir dinheiro público em áreas consideradas estratégicas e fundamentais para economia e segurança nacional.
Por trás desse ferramental, estava a crença de políticos, economistas e intelectuais brasileiros na chamada teoria da dependência: a ideia de que o Brasil jamais deixaria de ser um país subdesenvolvido se apenas vendesse sua produção agropecuária ao mundo e consumisse de volta produtos industrializados.
O país precisaria aumentar seu parque industrial para ter tanto produtos com maior valor agregado para exportar quanto empregos mais bem remunerados do que os rurais. Esse seria o caminho pra superar a pobreza.
Só que deu errado. Com o passar do anos, o Estado viu seus gastos aumentarem cada vez mais, já que tinha que bancar os custos de atividades produtivas nas quais nem sempre o país era eficiente.
Além disso, o preço final das mercadorias para os brasileiros era muito mais caro, porque produzir no país era custoso e porque os produtos estrangeiros eram taxados para proteger a indústria nacional.
A situação gerava ao mesmo tempo inflação, que precisaria ser contida com altos juros, que aumentavam ainda mais alta a dívida pública do país, que se via diante da necessidade de gastar cada vez mais no seu papel de produtor de bens que custavam caro e eram ruins, e pressionavam a inflação, e assim sucessivamente.
Foi assim que o país desaguou na década de 1980 em hiperinflação e necessidade de empréstimos justamente do FMI, que forçou a adoção de medidas do Consenso de Washington.
No curto prazo, essas medidas resultaram na quebradeira de parte significativa da indústria nacional, agora sem o respaldo de medidas protecionistas. Mas, de alguma maneira, algumas medidas econômicas dessa vertente se mantém populares até hoje, como a isenção fiscal a certos setores em troca da manutenção de empregos.
O que Trump e Biden propõem?
De acordo com a economista Monica De Bolle, do Peterson Institute for International Economics, o que os dois candidatos americanos têm proposto agora é um receituário muito parecido com o aplicado no Brasil dos anos 1960.
"São as mesmas medidas que vimos na substituição de importações da América Latina", diz De Bolle. A diferença está no grau e nas motivações: os EUA não querem se industrializar, e sim reavivar parte de seu parque industrial hoje "zumbi".
E não quer fazer isso para superar a pobreza, mas para não depender de parceiros internacionais em quem não confia, como a China.
Do lado do republicano, o plano não chega a ser uma novidade. Trump se elegeu em 2016 prometendo que sua ascensão à presidência seria "uma vitória do assalariado, do operário" e garantindo que faria uma reversão do processo de globalização da produção industrial, estimulada décadas antes pelo seu próprio partido, e com isso reabriria postos para os trabalhadores fabris.
Foi exatamente o que ele tentou fazer. Trump impôs tarifas para a importação de uma série de produtos. Seu governo instituiu imposto de 10% a cerca de US$ 200 bilhões em produtos da China, seu principal alvo.
Mas o Brasil não escapou dessas medidas protecionistas — o aço brasileiro tem sido sucessivamente taxado para proteger a ineficiente indústria siderúrgica americana e a carne bovina brasileira in natura ficou vetada do mercado dos EUA por quase toda a gestão Trump, alegadamente por motivos sanitários, mas em medida vista pelo setor brasileiro como protecionismo aos fazendeiros eleitores do republicano.
Ao renegociar acordos comerciais — como o novo tratado entre México, EUA e Canadá, conhecido pela sigla em inglês USMCA — Trump incluiu uma cláusula que dava preferência aos produtores americanos em compras feitas pelo governo dos EUA.
Com isso, forçou o retorno de parte da indústria automobilística do país, que tinha se deslocado para o México em busca de mão de obra mais barata para as fábricas.
E em seu último grande movimento na direção da substituição de importação, Trump anunciou que transformaria a falida empresa do ramo fotográfico, a Kodak, em uma produtora do medicamento paracetamol.
Como os EUA não têm um banco público para fomento de empresas nacionais, como o BNDES, o presidente alterou as autorizações de empréstimo da Agência Internacional de Financiamento do Desenvolvimento dos EUA, normalmente destinada a bancar projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento, para financiar a empreitada doméstica da Kodak e conceder US$ 765 milhões em dinheiro público para o início da produção.
Com isso, abriria 350 postos de trabalho em Rochester (NY), de onde os últimos empregados da Kodak foram demitidos em 2017. E produziria cada comprimido a um custo quase 30% mais alto do que os disponíveis hoje nas gôndolas de farmácia americanas, oriundos de China e Índia.
Trump e os Republicanos não estão sozinhos nessa ideia. Em seu programa de governo, Biden anunciou a intenção de estimular na população o comportamento "Buy American", ou "compre produtos americanos".
Isso seria feito por meio da injeção de dinheiro público na economia: Biden prometeu um aumento de US$ 400 bilhões em quatro anos nas compras governamentais de bens e serviços dos EUA, além de US$ 300 bilhões em novas pesquisas e desenvolvimento em questões de tecnologia e na indústria dos EUA.
Biden ainda prometeu "trazer de volta cadeias de suprimento críticas para a América para que não dependamos da China ou de qualquer outro país para a produção de bens essenciais em uma crise". O plano, de acordo com a campanha, criaria pelo menos 5 milhões de empregos em fábricas ao redor do país.
Em julho passado, Douglas Irwin, pesquisador do Peterson Institute for International Economics (PIIE), think tank em que surgiu o consenso de Washington, notou em um artigo que as políticas de substituição de importação estão fazendo um "indesejável retorno".
"Até mesmo os Estados Unidos procuram promover a manufatura doméstica e excluir as importações do mercado. O governo Trump tem tomado medidas para 'relançar' a produção de automóveis, semicondutores e outros bens manufaturados para impulsionar a produção americana e criar empregos na indústria", escreveu Irwin.
Por que Washington abandonou o Consenso e abraçou o protecionismo?
De acordo com De Bolle, se na América Latina dos anos 1960, a motivação para adoção da substituição de importação era a economia, nos Estados Unidos de hoje esse movimento é político.
Promovido pelo republicano Ronald Reagan nos anos 1980, o Consenso de Washington seria plenamente incorporado também pelos democratas. O próprio Biden defendeu entusiasticamente aspectos da globalização que levaram para a América Latina e para Ásia partes do processo industrial que antes aconteciam em fábricas no chamado cinturão da ferrugem, dos quais fazem parte estados como Pensilvânia, Wisconsin, Michigan e Illinois.
Ao longo de décadas, o processo foi gerando uma massa de ex-operários sem qualificação para arranjar novos empregos bem remunerados e cujas opções de trabalho os jogavam para uma classe social abaixo do que se acostumaram a ter.
Eram em sua maioria homens brancos que passaram boa parte da vida votando nos democratas — muito presentes nos sindicatos — mas que se viam abandonados pela política econômica de governos como o de Bill Clinton. Na prática, nenhum político lhes prometia o eles desejavam — ter seus empregos nas fábricas de volta — até o surgimento de Donald Trump em 2016.
O eco que as palavras de Trump produziram nesse grupo explica como, em 2016, ele venceu Michigan, após quase 30 anos sem vitória de um presidenciável republicano no Estado, o Wisconsin, que não gerava vitória republicana em 32 anos e a Pensilvânia, que votara democrata nos 20 anos anteriores.
Em quatro anos, os números mostram que os empregos fabris não voltaram a essas regiões. "Nem iam voltar. Esse segmento industrial já morreu há muito tempo. O que temos é o discurso político, um grande jogo de cena que funciona com o eleitor a curto prazo", afirma De Bolle.
Prova de como o reposicionamento de Trump em relação à economia gerou impactos consistentes no eleitorado é o fato de que a economia é o único tópico em que ele passou boa parte da corrida eleitoral com índices melhores do que os de Biden - hoje, ambos então empatados nesse quesito.
"A pandemia também deu força a esse nacionalismo na economia", afirma De Bolle.
Ela se refere ao fato de que os EUA enfrentaram desabastecimento de material básico como máscaras e paracetamol durante a pandemia. Isso porque as importações do país acabaram interrompidas.
"É verdade que o pêndulo pós-COVID se moveu para uma aceitação de um grau maior da intervenção estatal na economia", afirma o economista Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial.
O momento vivido pelo mundo e a necessidade de disputar os eleitores nesses estados-chave explicam para os dois economistas o rumo que os programas econômicos de Biden e Trump tomaram.
Mas os dois economistas são céticos sobre quão longe o republicano e o democrata estariam dispostos a levar essa agenda de substituição de importação em um próximo governo.
"Medidas como a guerra comercial com a China feriram a economia americana. Acho que nem Trump se repetiria num segundo mandato. Não vejo um neodesenvolvimento americano. Não dá pra submeter completamente a lógica do mercado dessa maneira", diz Canuto.
Faça o que eu digo, não faça o que eu faço
Tanto para De Bolle quanto para Canuto, o maior risco dessas medidas econômicas de Trump e Biden está menos no que pode acontecer com a economia americana e mais na sinalização que isso passa para governos ao redor do mundo.
Em seu artigo, Irwin nota que países africanos e asiáticos têm flertado coma agenda de substituição de importações. É muito improvável, segundo o pesquisador, que o resultado para eles possa ser melhor do que o que aconteceu no Brasil.
"É preocupante porque se os EUA adotam isso, pode virar uma onda, em um momento em que precisamos ainda mais desses instrumentos do Consenso de Washington", diz Canuto, em referência à recessão global provocada pela pandemia de COVID-19.
Segundo ele, os americanos podem adotar medidas de substituição de importações sem acabar em fiasco justamente porque são os americanos.
"Eles têm uma enorme dívida pública e mesmo assim os títulos da dívida que emitem são demandados pelo mundo inteiro, mesmo que paguem uma miséria (em juros). Os fundos internacionais fazem reserva de liquidez com a dívida americana. Então não dá pra ignorar esse contexto e achar que você pode fazer isso no Brasil", diz Canuto.
De Bolle concorda. "Se em Washington o Consenso de Washington saiu de moda, ele segue valendo no FMI, no Banco Mundial e pro resto do mundo."
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