A crise política no Peru - que destituiu seu terceiro presidente em três anos - aponta para um esgotamento do desenho institucional do país, segundo o doutor em sociologia e professor associado na Universidade Federal de Goiás, Carlos Ugo Santander. A seguir, trechos da entrevista por telefone do sociólogo peruano ao Estadão.
Qual é sua leitura sobre o afastamento do presidente Vizcarra?
É importante esclarecer que impeachment não é o mesmo que a vacância (que foi o que ocorreu). Esta é uma figura política do sistema parlamentarista. O impeachment tem conotação também jurídica. Vacância, segundo a Constituição, se apoia num quesito de incapacidade moral, que é um conceito muito ambíguo. Por isso, ela pode ser utilizada à vontade pelos legisladores. Alguns denominam de golpe, alguns denominam de movimento legal.
O ex-presidente estava envolvido em processos de corrupção?
A questão é que os parlamentares podem esticar o conceito de "incapacidade moral" até qualquer ponto. O que existe é uma opinião generalizada sobre seu envolvimento. Há indícios de que o presidente se envolveu com esquemas de corrupção quando ele era governador.
Qual o interesse do Congresso em tirar um presidente com tanta popularidade?
A popularidade de Vizcarra ultimamente não estava tão alta, mas a opinião pública concordava que ele não poderia ser destituído num contexto de pandemia. Mas os interesses são dos mais diversos: há interesses de grupos empresariais, associados a universidades e o de adiar as eleições. Parlamentares procuram também reconstituir algumas prerrogativas que perderam, como a possibilidade de se reeleger.
Quais são as consequências políticas dessa prerrogativa?
Quando um político não busca cooperação, tenta excluir os outros do jogo, os outros vão se vingar. É um grave erro (o veto à reeleição). O Brasil tem um ditado muito interessante que é: "O Brasil não é para principiantes". O Peru, como qualquer outro país, não pode estar na mão de principiantes. O ambiente democrático está vigente no Peru. O que demonstra a situação de conflito é o desenho institucional. Medidas populistas, como essa, não funcionam.
O que significa para o cenário político peruano um terceiro afastamento de presidente em tão pouco tempo?
Significa uma questão muito clara: o desenho institucional que dá suporte à democracia se esgotou, não responde mais às demandas da população. As relações dos poderes Executivo e Legislativo, partidos políticos, do próprio Judiciário, o sistema eleitoral, nada funciona. Isso não se resolve com as próximas eleições, com o próximo presidente. Vão se reproduzir os mesmos problemas. A perspectiva é de uma mudança de Constituição.
Como isso afeta o cenário até as eleições de abril?
Há saídas de curto e médio prazos. O país se encontra em uma situação bastante caótica e o debate sobre se (a destituição) foi constitucional ou não é circular. Se continuarmos nele, pode haver uma espiral de descontentamento, e o país poderia até mesmo tomar uma trajetória de regressão autoritária. O novo presidente do Congresso tem 58 processos judiciais. É preciso uma direção política clara do governo.
O processo eleitoral corre riscos?
A expectativa é que as eleições ocorram mesmo. No ambiente de pandemia, se tornará uma eleição atípica, que pode levar a uma situação de autoritarismo.
Qual o significado dessas manifestações?
Elas mostram um acúmulo de indignação. Temos no país uma situação de precariedade de empregos, indicadores sociais ruins, desigualdade cada vez mais crescente e aumento da pobreza. Até hoje, o governo está tentando encontrar alguma estabilidade. Não sei se vai conseguir. Tenho a impressão de que, se não se aponta uma medida mais concreta, podem acontecer consequências imprevisíveis, com movimentos violentos, atores autoritárias que vão tentar estabelecer a ordem à força. É preciso um passo muito maior do que apenas garantir as próximas eleições para fechar essa ferida.
Uma constituinte?
Uma constituinte para redefinir todo esse conjunto. No Peru, as pessoas estiveram adormecidas, por questões ideológicas. Isso impede mudanças mais substanciais. Não é da noite para o dia, mas acredito que seria uma saída democrática.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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