Uma agora é confeiteira, e outro se prepara para ser livreiro, mas ambos têm em comum o fato de terem deixado para trás sua experiência de trabalho em hospitais, em condições insuportáveis em consequência da pandemia do coronavírus.
A francesa Nolwenn Le Bonzec chegou a Bruxelas, procedente de sua Bretanha natal, em busca de trabalho. Deixou para trás sua experiência médica para assar bolos e está convencida de que essa mudança "salvou minha saúde mental".
"Trabalhei cinco anos em hospitais e, aos poucos, vi como as condições de trabalho se deterioraram, e a saúde se tornou uma commodity", diz essa jovem de 27 anos, que hoje é responsável pelos cupcakes da loja Lilicup.
Enquanto isso, Thomas Laurent decidiu realizar "um sonho antigo", após 15 anos trabalhando em hospitais. Apaixonado por quadrinhos desde a infância, ele iniciará em janeiro a formação de livreiro, obrigatória na França.
Este enfermeiro francês de 35 anos pediu demissão, recentemente, do serviço de urgência de um famoso hospital de Lyon por considerar que as condições para o exercício da sua profissão "já eram insustentáveis".
A permanente falta de pessoal e de recursos, assim como a falta de tempo para cuidar bem dos pacientes, acabaram consumindo seu entusiasmo.
- Entusiasmo diluído -
"Passamos anos pedindo melhores condições de trabalho. Mas o governo (belga) não nos leva a sério. Se continuasse, cairia na depressão. Fizemos manifestações, nos mobilizamos, mas nada mudou", lamentou Le Bonzec, que trabalhava em uma famosa clínica da capital belga.
A jovem já questionava sua situação, quando chegou a primeira onda da pandemia do coronavírus, na primavera boreal (outono no Brasil).
"Psicologicamente, era difícil trabalhar em unidades de isolamento, tendo que lutar por máscaras. Corríamos riscos para a nossa saúde e de nossos entes queridos. E víamos pacientes que não tinham direito de visita, que estavam sozinhos, que morriam sozinhos", lembrou.
A falta de pessoal tem necessariamente pesado no atendimento aos pacientes, ponto focal da profissão.
Aos poucos, chegar ao hospital foi-se tornando cada vez mais difícil, até que não tiveram mais forças para suportar a pressão, a frustração e, sobretudo, a "perda de sentido" do trabalho.
Desde que saiu do hospital, Laurent tem dormido melhor, e a pressão "desapareceu".
Da mesma forma, Nolwenn aponta que "seis meses depois, ainda não sinto falta do meu trabalho como enfermeira. Estou feliz por vir trabalhar e contar como foi meu dia quando cheguei em casa", embora a mudança signifique acordar todos os dias às 4h para ir à confeitaria.
- Menos aplausos, mais compromisso -
O desconforto no trabalho atinge principalmente os mais jovens, "porque eles entram na profissão com seus ideais, mas recebem um banho frio diante da realidade e nem sempre têm o apoio e a supervisão que deveriam", diz Astrid Van Male à AFP, uma enfermeira belga que se especializou no "burnout" de seus colegas.
Eles "nem sempre têm o reflexo de cuidar de si mesmos, porque estão acostumados a cuidar dos outros. Esperam que todo seu mundo desmorone" para tomar consciência do que está acontecendo com eles, aponta.
Alguns até se sentem culpados por tirar uma folga e aumentar a carga de trabalho de seus colegas.
"Se não fizermos nada, logo não haverá mais enfermeiras nos hospitais. Até enfermeiras estrangeiras não aceitam mais essas condições de trabalho", alerta.
Com a segunda onda da pandemia, os aplausos da tarde nas varandas e janelas diminuíram.
"Para quem aplaude, mas não se manifesta conosco, é fácil. Coloquem suas energias em outro lugar para nos ajudar!", diz Le Bonzec sem remorso, que ainda se refere no presente à vida que já deixou para trás.