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Estado de Minas AMIZADE IMPROVÁVEL

Como me tornei amigo do soldado que me cegou quando eu tinha 10 anos

Richard Moore foi atingido por uma bala de borracha quando voltava da escola na Irlanda do Norte


05/12/2020 16:51 - atualizado 05/12/2020 17:36


Charles e Richard mantêm uma relação de amizade desde que se encontraram pela primeira vez em 2006(foto: Department for International Development )
Charles e Richard mantêm uma relação de amizade desde que se encontraram pela primeira vez em 2006 (foto: Department for International Development )

Richard Moore perdeu a visão aos 10 anos, quando foi atingido por uma bala de borracha na Irlanda do Norte.

Em 2006, ele conheceu o soldado britânico que atirou nele. E, desde então, os dois mantêm uma boa relação de amizade.

Até recentemente, entretanto Charles Innes, o autor do disparo, não havia sido capaz de pedir desculpas.

Em entrevista ao programa de rádio Outlook, da BBC, os dois contam como nasceu essa improvável amizade.


Em 1972, Richard Moore foi atingido no rosto por uma bala de borracha quando voltava da escola.

Ele morava na cidade de Derry, um dos epicentros do conflito que durou três décadas e deixou mais de 3,5 mil mortos na Irlanda do Norte.

O período, que ficou conhecido como "Troubles", foi marcado por episódios de extrema violência entre dois grupos: os republicanos/nacionalistas irlandeses, majoritariamente católicos; e os unionistas/legalistas, majoritariamente protestantes.

Enquanto o primeiro grupo era a favor da união das duas Irlandas, o segundo queria que o território continuasse a fazer parte do Reino Unido.

À medida que a onda de violência se intensificava no país, as Forças Armadas britânicas enviaram milhares de tropas para a região na tentativa de controlar a situação.

Entre o efetivo, estava o soldado Charles Innes, com 28 anos na época.

"A violência estava num nível em que praticamente diariamente um soldado, um policial ou um agente penitenciário ficava gravemente ferido ou era morto", diz ele.

Mas as perdas não se restringiram às forças de segurança. Entre as vidas ceifadas pelo confronto, 52% foram de civis.

No dia 4 de maio daquele ano, Richard, que tinha 10 anos, faria parte das estatísticas.

Ao passar correndo por um posto de vigia do Exército, localizado próximo a sua escola, ele foi atingido no rosto por uma bala de borracha disparada a três metros de distância.

Ele conta que estava com um grupo de colegas da mesma idade — e que talvez tenham jogado pedras, ele simplesmente não consegue se lembrar.

"Só me lembro de ser um belo dia de sol. Me lembro de passar correndo... e depois a próxima coisa que me lembro é de acordar deitado na mesa da cantina da escola. Um professor me carregou e botou lá."

Naquele momento, ele já não conseguia enxergar.

"Não lembro de mais nada até acordar na ambulância. Eu ouvia a sirene ao fundo. Meu pai estava segurando minha mão e dizia: 'Vai ficar tudo bem, Richard, você vai ficar bem'."


Richard Moore tinha 10 anos quando ficou cego(foto: Department for International Development )
Richard Moore tinha 10 anos quando ficou cego (foto: Department for International Development )

Meia hora depois do incidente, Charles, o autor do disparo, soube pelo chefe o que havia acontecido.

"Ele disse: 'Charles, é melhor você sentar. Aquela bala de borracha que você disparou atingiu um menino de 10 anos. E ele pode morrer. Está gravemente ferido'."

"Fiquei absolutamente chocado. Me senti horrível."

Ele afirma que não fazia ideia que estava disparando contra crianças.

Em sua versão, havia um grupo grande de jovens de diferentes idades — de adolescentes até na faixa de 20 anos — que estavam ameaçando os militares dentro do posto.

"Eu dei o aviso (de que iria disparar)... e vieram mais pedras, mais insultos, gritos... Então, fiz o que era o procedimento padrão. Disparei a bala de borracha", conta.

Enquanto isso, a família de Richard era informada no hospital que ele havia perdido um dos olhos e a visão no outro — e que ficaria cego para o resto da vida.

"Lembro da minha mãe chegar perto da minha cama, achando que eu estava dormindo, começar a rezar e cair aos prantos. Ela estava sem fôlego de tanto soluçar... e dizia: 'Deus, por favor, devolva a visão dele'", recorda.

Charles, por sua vez, não procurou nenhuma informação a respeito de quem era o menino que tinha atingido, tampouco sabia que tinha ficado cego.

"Mas eu pensava nele, e tinha um profundo arrependimento e grande tristeza por ter causado esse terrível ferimento nele."

Após o incidente, foi aberto um inquérito policial e militar sobre o ocorrido. E a família de Richard recebeu uma indenização.

Apesar do trauma, Richard voltou para sua antiga escola, entrou para a universidade e comprou dois pubs que administra pessoalmente.

Jamais guardou mágoas em relação ao soldado que atirou nele.

Em 2006, quando um canal de televisão que fazia um documentário sobre sua vida localizou Charles, Richard viu uma oportunidade de fazer contato — e pediu para entregarem uma carta a ele.

"Eu queria que ele soubesse que eu o havia perdoado", diz.


O Dalai Lama é patrono da instituição Children in Crossfire, fundada por Richard(foto: Department for International Development )
O Dalai Lama é patrono da instituição Children in Crossfire, fundada por Richard (foto: Department for International Development )

"Era uma carta absolutamente linda. Simplesmente não havia animosidade, era tão positiva, absolutamente incrível. Basicamente ele dizia que gostaria muito de me conhecer", relembra Charles.

Richard embarcou então para Edimburgo, capital da Escócia, onde Charles mora até hoje. E esperou sentado por ele na recepção do hotel.

"Lembro de ter ficado nervoso de repente, com vontade de chorar, uma sensação que nunca tive. E comecei a pensar: o que você está fazendo aqui?"

Foi então que Charles chegou e bateu no ombro dele:

"Oi, Richard, é o Charles."

Os dois passaram as quatro horas seguintes conversando sobre a vida, família, hobbies e, claro, sobre o que tinha acontecido naquele 4 de maio.

"Obviamente, as histórias são um pouco diferentes. A visão dele das coisas é um pouco diferente da minha. Mas ele diz que não adianta ficar ruminando isso... e está absolutamente certo. Ambos contamos nossas histórias", afirma Charles.

"Eu certamente não dispararia uma bala de borracha se soubesse o dano que isso iria causar", acrescenta.

Depois desta ocasião, os dois acabaram desenvolvendo uma amizade.

"Valorizo %u200B%u200Btanto (a nossa amizade) que, quando eu morrer, tenho dois amigos que gostaria que fizessem um discurso no meu funeral, e um deles é o Richard", revela Charles.

Mas até recentemente ele não havia sido capaz de pedir desculpas ao amigo.

"Quando (o pedido de desculpas) veio, foi realmente comovente. Eu não precisava (que ele pedisse desculpas), não pedi isso, mas quando aconteceu foi muito, muito bom", diz Richard.

Segundo ele, Charles, agora com 78 anos, era da opinião "de que, se você pede 'desculpa', significa que você não teve a intenção de disparar a bala".

"Ele dizia: 'Eu quis disparar a bala, mas nunca quis causar o dano'. E sempre falou que, se soubesse o que ia acontecer comigo, ele não teria disparado."

Embora para ele fosse uma questão de "semântica", Richard afirma que quanto mais os dois se conheciam, "mais ele sentia que o ex-soldado estava arrependido".

"Finalmente, muitos anos depois do nosso primeiro encontro, estávamos conversando uma noite sobre a palavra 'desculpa' e ele me falou: 'Richard, me desculpa'."

Casado e pai de dois filhos, Richard fundou em 1996 a instituição Children in Crossfire, oferecendo ajuda a crianças que se encontram em situações semelhantes à que ele viveu.

"Às vezes acontecem coisas na vida que adoraríamos recriar. Charles cometeu um erro monumental, eu fui o receptor final. Eu perdoo Charles. E gosto muito dele."

Ouça aqui (em inglês) a íntegra do programa Outlook


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