E "é um fenômeno recente, alavancado por muita notícia falsa de que a vacina causa isso e aquilo, e vindo de várias origens, principalmente setores evangélicos", mas que também "começam em Brasília", explica o dr. Douglas Rodrigues, que trabalha com indígenas na Amazônia há cinco décadas.
O presidente Jair Bolsonaro sempre negou a gravidade da pandemia que já deixou mais de 217 mil mortos no Brasil. Em dezembro, chegou a questionar em dezembro os possíveis efeitos colaterais das vacinas: "Se virar jacaré, é problema seu", declarou.
A frase chegou às aldeias.
Rodrigues nunca viu tanta relutância. "É muito preocupante. A gente fala, explica e consegue reverter na maioria dos casos. Em outros, dá trabalho e atrasa muito ", explicou à AFP.
Beto Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, deparou-se com uma atitude "praticamente de negacionismo" em duas aldeias da região que faz fronteira com o Peru.
Já em Santa Catarina, o xokleng João Voia explica que "Têm aqueles que querem tomar a vacina com pensamento de proteger a si e sua comunidade. Já outros (...) se recusam a tomar a vacina naquela ideia de não ser seguro, reproduzindo aquilo que o presidente disse".
"Vamos às nossas aldeias desconstruir isso", diz Vanda Witoto, em Manaus, devastada pela segunda onda da pandemia e pelo colapso do sistema de saúde.
Vanda, cujo nome em Witoto é Derekini ("formiga brava"), responde a quem a questiona: "Eu sou uma formiga brava, não um jacaré".
Para contra-atacar as notícias falsas, os indígenas lançaram uma campanha com a hashtag #VacinaParente.
Apesar dos desafios, Douglas Rodrigues acredita que a vacinação nas aldeias acabará por ser "um sucesso", até porque experiências anteriores, como as campanhas contra o sarampo, deixaram memórias positivas.
Mas há outra discussão que causa preocupação.
- Exclusão -
Existem cerca de 900 mil indígenas no Brasil (0,4% da população), de acordo com o censo de 2010.
O governo priorizou no plano de vacinação aqueles que vivem nas aldeias, beneficiados pelo sistema de saúde indígena, excluindo cerca de 380 mil instalados em áreas urbanas ou em terras não demarcadas.
"O governo acredita que os indígenas da cidade são menos indígenas do que os das aldeias", critica Beto Marubo.
Em 11 meses, 932 índios morreram de covid-19, e mais de 46 mil, pertencentes a 161 povos, foram infectados, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), cujos balanços incluem aldeados e não aldeados, indistintamente.
Um estudo da Universidade de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, mostrou, em julho passado, que os indígenas das cidades tinham cinco vezes mais chances de contraírem a doença do que os não indígenas.
"Correm mais risco, vivem em situação precária. O risco epidemiológico está comprovado", e sua exclusão da vacinação se deve ao "preconceito contra os indígenas", sustenta Douglas Rodrigues.
A técnica de enfermagem Vanda Witoto realiza ações preventivas de casa em casa há meses no Parque das Tribos, comunidade onde vivem cerca de 3.000 indígenas na periferia de Manaus. Seu trabalho na área de saúde lhe deu acesso à vacina, e não sua condição de indígena.
"Há uma grande vulnerabilidade aqui", afirma ela, do hospital improvisado na entrada da comunidade, onde várias mulheres protegidas da cabeça aos pés analisam sintomas e isolam os casos suspeitos em um espaço semiaberto, com seis redes.
Vanda enumera as carências de saúde na comunidade e culpa o governo pela situação precária.
Dizimados ao longo da história por doenças trazidas do exterior, os indígenas veem um risco adicional de contágio no aumento das invasões de suas terras por garimpeiros e madeireiros, que consideram consequência da posição do presidente Bolsonaro a favor da explotação econômica da Amazônia.
O cacique Raoni Metuktire, emblemático defensor da Amazônia, pediu na semana passada ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que investigue Bolsonaro por "crimes contra a humanidade", por "perseguir" indígenas, destruindo seu hábitat e ignorando seus direitos.
As notícias falsas e a exclusão dos indígenas que vivem fora das aldeias foram discutidas na segunda-feira (25) em um encontro virtual de mulheres indígenas.
A educadora mineira Célia Xakriaba abriu o fórum, dizendo: "Nossa presença incomoda".
E fez um apelo para que ninguém tenha medo da vacina: "O que temos que temer é sermos asfixiados por essa política genocida do governo Bolsonaro".