Jornal Estado de Minas

CORONAVÍRUS

'Chernobyl' mostra que acidente nuclear tem muito em comum com pandemia


Partículas invisíveis a olho nu e nocivas à saúde se espalham por uma cidade colocando em risco a vida da população local. E só uma intervenção rápida das autoridades poderia evitar que o problema se espalhasse rapidamente não só em regiões mais próximas, mas para outros países, deixando milhões de mortos. É do novo coronavírus que estamos falando? Pode ser. Mas a premissa também serve para o acidente nuclear de Chernobyl, que completa 35 anos nesta segunda-feira, 26.





A tragédia soviética já foi retratada em filmes e documentários ao longo dessas mais de três décadas, mas nenhuma reconstituição fez tanto sucesso como ‘Chernobyl’, da HBO. Lançada em maio de 2019, a série ganhou rapidamente a atenção do público. Aclamada pela crítica e premiada, levou Emmy e Globo de Ouro de melhor minissérie.

Mas assisti-la agora, durante a pandemia de COVID-19, torna-se um exercício de reflexão ainda mais interessante. É impossível não associar a produção do diretor Johan Renck à crise global que vivemos. Muitos elementos estão ali: o correto alarmismo dos cientistas, a luta dos profissionais de saúde, o drama pessoal dos contaminados, a burocracia e o negacionismo de parte do governo.

Químico responsável pela comissão de investigação do acidente na usina em Pripyat, o protagonista Valery Legasov (Jared Harris) trava desde as primeiras cenas uma batalha incansável contra a burocracia do Estado soviético. O governo a princípio buscou abafar o fato, mas quando se deu conta de que a radiação atingia países vizinhos e estampava as manchetes da mídia internacional, resolveu voltar atrás. O incessante debate entre a luz da ciência e as trevas do negacionismo é o que conduz o fio narrativo em diversos momentos da trama. É o que também conduz nossas vidas 35 anos depois.





O alerta que Legasov fez ao governo soviético se compara ao do médico chinês Li Wenliang. Ele foi um dos primeiros a entender e relatar casos de síndrome respiratória do novo coronavírus em Wuhan, na China, ainda em dezembro de 2019. Mas acabou investigado pela própria polícia chinesa, acusado de espalhar ‘rumores’ sobre o surto na internet. Apenas em 20 de janeiro de 2020, o país declarou estado de emergência pela presença do Sars-CoV-2. Oftalmologista, Wenliang integrou o time de crise no Hospital Central de Wuhan até ser contaminado pelo vírus. Morreu em 6 de fevereiro, antes mesmo que a COVID-19 se tornasse um inimigo global.

A pandemia traz à tona incontáveis histórias de luto e de superação que, no futuro, certamente serão narradas de forma documental ou ficcional. E os últimos dias de vida de Wenliang estarão entre elas.

Mas o que torna ‘Chernobyl’ uma série primorosa é justamente não se limitar apenas aos aspectos técnico-científicos. O drama pessoal dos infectados e das equipes de saúde, que nos acostumamos a ver diariamente nos jornais, também fizeram parte do enredo de ‘Chernobyl’, bem representado pelo casal Lyudmilla (Jessie Buckley) e Vasily (Adam Nagaitis).





E, em seu desfecho, a série tenta responder à pergunta que se faz ao longo de toda a narrativa: quem foi o grande culpado (ou culpados) pelo acidente nuclear? O julgamento que ocupa o quinto e último episódio se distancia da realidade em vários aspectos. Ao contrário do que mostra a produção da HBO, nem Legasov nem Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), vice-presidente do Conselho de Ministros da União Soviética, estiveram entre os interrogados no tribunal que julgou os possíveis crimes cometidos em Chernobyl.

Segundo o autor Craig Mazin, a opção por inserir Legasov nas cenas do episódio final teve a intenção de encerrar sua jornada e a mensagem científica sobre Chernobyl de maneira digna.

O julgamento de Anatoli Dyatlov (Paul Ritter), engenheiro supervisor da usina de Pripyat, nos faz questionar: também serão julgados os que, de alguma forma, colaboraram para a transmissão da COVID-19 em todo o mundo? Quantos crimes foram cometidos no Brasil e em outros países? É claro que o acidente de Chernobyl, no fim das contas, foi muito menos difuso e letal do que a pandemia que vivemos, apesar de ser até hoje o maior desastre nuclear da história. Direta e indiretamente, foram entre 4 mil e 100 mil mortos, segundo estimativas extraoficiais.

Em 2019, com o lançamento da HBO, Chernobyl viveu um ‘boom’ de turistas: foram 75 mil visitantes até agosto daquele ano, segundo a Agência Estatal para a Gestão da Zona de Exclusão. E o próprio criador da série veio a público pedir que os turistas ‘respeitassem o local da tragédia’. “Se você visitar por favor, lembre-se que uma terrível tragédia aconteceu ali. Comportem-se com respeito por todos que sofreram e se sacrificaram”, disse Mazin no Twitter.

Ainda não está claro se, no futuro, lembraremos do mercado central de Wuhan como o epicentro da COVID-19, apesar da OMS descartar o local como a origem do vírus, ou se construiremos memoriais para as mais de 3 milhões de vidas perdidas (até o momento, segundo a Universidade Johns Hopkins). Seja na arte ou na realidade, o que o acidente nuclear e o coronavírus ensinam é a necessidade de lembrar do passado para não repeti-lo. Quantas lições poderíamos e ainda podemos aprender com Chernobyl.





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