O 'delinquente juvenil mais velho dos Estados Unidos' recentemente foi solto da prisão e agora é um homem livre.
Joe Ligon falou ao Serviço Mundial da BBC sobre como foi passar quase sete décadas na prisão, por que ele precisou esperar tanto tempo pela liberdade e como planeja passar o resto de seus dias.
Ele faz parte de um grupo de jovens que foram condenados à prisão perpétua nos EUA em uma época em que o sistema não permitia liberdade condicional em sentenças de homicídio. Ligon foi condenado por seu envolvimento em assassinatos cometidos em 1953, quando tinha 15 anos.
Nos últimos anos advogados americanos conseguiram reverter na Suprema Corte as condenações de prisão perpétua sem condicional para criminosos que eram delinquentes juvenis na época do crime. Em vez de penas de prisão perpétua, eles receberam sentenças que vão até 35 anos, com possibilidade de liberdade condicional depois disso.
Em 2017, a Justiça americana trocou a pena de Ligon de prisão perpétua para 35 anos com direito a liberdade condicional.
Ligon surpreendeu a todos, inclusive seu próprio advogado, e recusou a liberdade condicional. Ele argumentava que já tinha pago por seus crimes e que sua condenação à prisão perpétua sem condicional tinha sido inconstitucional.
Além disso, Ligon sempre negou ter matado suas vítimas, embora tenha reconhecido que esfaqueou duas pessoas que posteriormente sobreviveram ao ataque.
Diante disso, ele pedia liberdade completa, e não condicional.
Seu advogado seguiu batalhando e em fevereiro deste ano, Joe Ligon, hoje com 83 anos, finalmente foi solto.
Solidão
"Eu nunca estive sozinho, mas sou um solitário. Prefiro ficar sozinho o maior tempo possível. Na prisão, fiquei sozinho em uma cela, desde o momento da minha prisão até a minha libertação."
"Isso ajuda pessoas como eu, que querem ficar sozinhas. Eu era o tipo de pessoa que, depois de entrar na cela e fechar a porta, não via nem ouvia nada do que estava acontecendo. Quando permitiam que tivéssemos rádio e televisão, essa era a minha companhia."
Talvez seja justo dizer que a vida na prisão era conveniente para Joe Ligon, até certo ponto.
Isso lhe permitiu passar despercebido, ficar quieto e longe de problemas. Foram lições, diz ele, que aprendeu em seus 68 anos atrás das grades.
E quando chegava a hora de se retirar para sua cela no final do dia, não o incomodava ficar sozinho. Na verdade, ficar isolado era uma escolha consciente.
"Eu não tinha amigos dentro da prisão. Não tinha amigos fora. Mas a maioria das pessoas com quem interagia (...) eu as tratava como se fossem amigos. E ficávamos bem assim", diz ele.
"Mas não uso a palavra amigo, aprendi que usar essa palavra significa muito para uma pessoa como eu. E muita gente diz que [se você se torna] amigo (...) pode estar cometendo um grande erro. "
Ligon aceita que sempre foi uma pessoa solitária.
Ele cresceu no interior, em Birmingham, Alabama. Morava com seus avós maternos e não tinha muitos amigos. Mas ele se lembra de momentos agradáveis %u200B%u200Bcom sua família, como os domingos que passaram juntos assistindo seu outro avô fazer sermões em uma igreja local.
Ele tinha 13 anos quando se mudou para o sul da Filadélfia para morar em um bairro de operários com sua mãe, que era enfermeira, seu pai, que era mecânico, e seu irmão e irmã mais novos.
Ele teve problemas na escola e não sabia ler nem escrever. Ele não praticava esportes e os amigos não tinham muita importância em sua vida.
"Eu era o tipo de pessoa que tinha um ou dois amigos, isso me bastava, não estava procurando grandes grupos."
O crime e o castigo
Ligon fala pouco sobre uma noite de sexta-feira em 1953 que mudou o curso de sua vida.
Ele conta que estava andando pela vizinhança com algumas pessoas que, segundo ele, não conhecia direito. Eles toparam com um outro grupo de pessoas que estavam bebendo.
"Começamos a pedir dinheiro a essas pessoas para comprarmos vinho e uma coisa levou à outra."
Seu relato termina aqui. Sabe-se que a noite terminou com uma série de esfaqueamentos que deixou dois mortos e seis feridos.
Ligon foi o primeiro a ser preso. Ele diz que não poderia contar aos policiais da delegacia com quem estava naquela noite.
"Mesmo as duas pessoas que eu conhecia, eu não sabia seus nomes, só os conhecia por seus apelidos."
Ligon diz que foi levado para uma delegacia longe de sua casa e mantido preso por cinco dias, sem acesso a assistência jurídica.
Ele fala que ficou indignado por muito tempo porque seus pais não foram autorizados a visitá-lo.
Naquela semana, o então jovem de 15 anos foi indiciado por assassinato, uma acusação que ele sempre negou, embora tenha revelado em uma entrevista à emissora americana PBS que esfaqueou duas pessoas, que posteriormente sobreviveram. Na entrevista, ele expressou remorso pelo ato.
"Eles [a polícia] nos deram depoimentos para assinar que me implicavam no assassinato. Eu não matei ninguém", diz ele.
A Pensilvânia é um dos seis Estados dos EUA onde a prisão perpétua não incluía qualquer possibilidade de liberdade condicional.
Em uma audiência, Ligon admitiu os fatos do caso e o juiz o considerou culpado de duas acusações de homicídio em primeiro grau. O adolescente não compareceu ao tribunal para ouvir que havia sido condenado à prisão perpétua sem liberdade condicional, o que não era incomum na época.
Isso significa que ele foi para a prisão sem saber os termos completos de sua sentença. Ele diz que não lhe ocorreu perguntar a ninguém.
"Eu nem sabia o que perguntar. Sei que é difícil de acreditar, mas é verdade", diz Ligon.
"Eu sabia que teria de cumprir uma sentença de prisão, mas não tinha ideia de que estaria lá pelo resto da minha vida. Nunca tinha ouvido as palavras 'prisão perpétua'."
"Tive tantos problemas quando era criança: não sabia ler nem escrever, nem mesmo conseguia soletrar meu nome. Eu sabia que meu nome era Joe, porque era assim que me chamavam há muito tempo."
Rotina de preso
Ligon diz que entrou no sistema prisional confuso, ao invés de amedrontado. O que ele lhe preocupava era sua família, "ficar longe deles, trancado".
Como prisioneiro, Ligon nunca questionou quanto tempo ele ficaria na prisão.
Viveu em seis presídios ao longo de 68 anos, sempre se adaptando à rotina da vida carcerária.
"Eles te acordam às 6 horas com o megafone, com uma voz que diz 'façam a contagem, pessoal, está contando o tempo' (...) às 7 horas é hora de comer, às 8 horas é hora de ir trabalhar. "
Às vezes Ligon trabalhava na cozinha e na lavanderia, mas na maioria das vezes era faxineiro. Após o almoço ao meio-dia, ele voltava às suas funções. Depois vinha a janta.
A vida na prisão permaneceu praticamente a mesma, enquanto o mundo exterior mudou profundamente ao longo das décadas.
"Não usei drogas nem bebi álcool na prisão, não fiz nenhuma dessas loucuras que fazem as pessoas morrerem, não tentei fugir, não fiz mal a ninguém", lembra.
"Fiquei o mais na minha que pude. O que a prisão me ensinou, junto com muitas outras coisas, foi cuidar da minha vida, sempre tentar fazer a coisa certa, ficar longe de encrencas quando possível."
A luz no fim do túnel
Cerca de 53 anos após sua sentença, Ligon foi informado de que um advogado queria vê-lo.
Motivado por uma decisão da Suprema Corte dos EUA de 2005 de que menores não poderiam ser executados, o advogado Bradley S. Bridge começou a investigar o que ele acreditava ser o próximo grande problema jurídico a surgir: menores que receberam pena de prisão perpétua sem liberdade condicional.
Na época, a Pensilvânia tinha 525 presos nessas circunstâncias, o maior número do país, de acordo com Bridge.
A Filadélfia tinha 325, e Ligon era o mais antigo.
"Ele realmente não estava ciente de sua sentença", disse Bridge, que pertence à Associação de Defensores Públicos da Filadélfia.
"Eu não sabia de nada até eu me encontrar com ele. É interessante que ele nunca perdeu as esperanças; ele estava totalmente otimista desde o início, sempre esperando que algo fosse feito [para soltá-lo]."
"Não tenho certeza de por que ele pensava que isso iria acontecer. Não acho que fosse realmente parte de seu processo de pensamento (...) mas ele nunca perdeu a fé que (... ) tudo seria consertado. Ele foi muito paciente ao esperar. "
Para Ligon, o encontro com o advogado foi revelador. Quando Bridge lhe mostrou uma cópia do recurso contestando o status legal de sua sentença, foi a primeira vez que Ligon soube dos termos de sua prisão.
"Percebi que fui maltratado desde o momento da minha prisão. Aprendi que era inconstitucional ser condenado (como menor) sem a possibilidade de liberdade condicional".
Embora para Ligon tenha sido o primeiro raio de esperança de que um dia ele sairia da prisão, nos próximos 15 anos ele tomou decisões difíceis que foram muito criticadas pelas pessoas no seu entorno. Ele recusou as oportunidades de liberdade condicional porque elas vieram com o que ele chama "uma sombra para a sua vida."
"O Conselho de Liberdade Condicional me visitou duas vezes. Aceitar a liberdade condicional teria sido uma saída rápida anos atrás", diz ele.
"[Mas se eu tivesse] ficaria em liberdade condicional pelo resto de minha existência e meu caso não exigia liberdade condicional por toda a vida. Se meu caso exigisse, não teria sido um problema. Mas é por isso que resisti. "
Em 2016, a Suprema Corte dos EUA decidiu que todos os menores condenados à prisão perpétua deveriam receber novas sentenças.
No ano seguinte, Ligon foi condenado novamente a 35 anos com direito a liberdade condicional depois disso. Como já havia cumprido bem mais do que os 35 anos, ele poderia solicitar a condicional imediatamente.
Bridge o incentivou a fazer isso, mas recebeu um "não" enfático como resposta.
"Todos perguntavam: 'por que você não aceita a liberdade condicional?'"
"E eu dizia: 'Não vou aceitar uma coisa quando posso obter algo melhor'. [Eu não fiz isso] por maldade, nada disso. Se eu aceitasse a liberdade condicional, eles continuariam a me tratar mal."
"As únicas palavras que usei foram: 'Quero ser livre'."
Assim, Bridge recorreu da sentença de 2017 e finalmente levou o caso ao tribunal federal, onde em novembro de 2020 um juiz decidiu a seu favor.
Nova vida depois de 68 anos
Quando Bridge foi ao condado de Montgomery para buscar Ligon em 11 de fevereiro, ele encontrou o ex-presidiário extremamente calmo.
"Eu esperava uma reação forte, do tipo 'oh, meu Deus'. Mas ele não demostrou nada disso. Não houve drama, nada."
Talvez Ligon estivesse simplesmente fazendo o que fazia há décadas: manter seus pensamentos para si mesmo.
Um mês após sua libertação, ele reflete com certo espanto no dia em que deixou a Instituição Correcional do Estado de Phoenix.
"Foi como nascer de novo. Porque tudo era novo para mim, quase tudo [mudou], as coisas ainda são novas para mim."
"Eu vejo alguns desses carros novos, esses carros não têm o mesmo design dos carros que eu conhecia quando estava nas ruas há tantos anos. Eu olho para todos esses prédios altos, não havia prédios tão altos como os que estão ao meu redor agora. "
"Isso tudo é novo", ela expressa, agitando os braços ao redor da sala.
"E estou me acostumando. Eu amo isso, isso é emocionante para mim, isso é um sentimento verdadeiramente genuíno."
Os últimos 68 anos tiveram um custo para Ligon.
Ele sabe que perdeu tempo esperando sua libertação sem liberdade condicional, tempo que poderia ter sido gasto com membros de sua família, muitos dos quais já morreram.
"Minha sobrinha Valerie nasceu quando eu estava na prisão, sua irmã mais velha nasceu quando eu estava na prisão, sua irmã mais nova nasceu enquanto eu estava na prisão", ela reflete.
"Toda a família imediata faleceu, os que ficaram vivos são [Valerie], a mãe de Valerie e eu."
E, no entanto, embora este homem de 83 anos esteja se adaptando a algo que esperou muito, agora ele tem poucos planos.
"Vou fazer a mesma coisa que tenho feito toda a minha vida. Conseguir um emprego de limpeza ou como zelador."
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