Durante décadas, crianças indígenas foram tiradas de suas famílias, muitas vezes à força, e alojadas em internatos de igrejas, onde eram abusadas e proibidas de usar suas línguas nativas. Além do processo brutal de aculturação, milhares desapareceram ao longo dos anos. Nas últimas semanas, descobertas chocantes oferecem indícios de que muitas podem ter morrido nessas escolas.
Ontem, os restos mortais de 751 pessoas, a maioria crianças, foram encontrados no local de uma antiga escola na Província de Saskatchewan. O anúncio veio após os restos mortais de outras 215 crianças terem sido encontrados em sepulturas clandestinas no terreno de um antigo internato em Kamloops, na Província de Colúmbia Britânica, em maio.
O Canadá tinha cerca de 150 internatos desse tipo, por onde passaram 150 mil crianças indígenas, desde a inauguração das escolas, em 1883, até o fechamento das instituições, em 1996. A escola Marieval, aberta em 1899, foi administrada pela Igreja Católica. Um cemitério ainda existe no terreno da escola, que fechou em 1997 e foi, logo em seguida, demolida. A comissão, contando com o testemunho de antigos estudantes e materiais de arquivo, listou Marieval como um local de sepulturas clandestinas.
Reconciliação
As descobertas recentes abalaram um país que luta contra um passado de abusos sistemáticos de povos indígenas. Ao longo dos anos, histórias orais sobre milhares de crianças desaparecidas nas escolas eram encaradas com ceticismo. As últimas revelações, no entanto, mostram que os relatos não eram simplesmente rumores.
Uma Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, que funcionou de 2008 a 2015, chamou a prática de "genocídio cultural". Muitas crianças nunca voltaram para casa. As famílias recebiam apenas explicações vagas sobre seu destino - ou nenhuma explicação, o que era bastante comum. A comissão estimou que 4.100 crianças desapareceram. No entanto, Murray Sinclair, ex-juiz indígena que liderou a comissão, acredita que foram mais de 10 mil.
A descoberta de ontem foi feita pela reserva indígena Cowessess, na Escola Residencial Indígena Marieval, a 140 quilômetros de Regina, capital de Saskatchewan. Não se sabe quantos dos 751 restos mortais pertenciam a crianças. "Sempre existiram conversas e boatos, mas ver esse número é muito significativo", disse o chefe da Federação de Nações Indígenas, Bobby Cameron. "É difícil, doloroso e de partir o coração."
Passado
As descobertas voltam a esquentar o debate sobre o passado dessas escolas do Canadá, onde abusos sexuais, físicos e emocionais eram comuns. Quando o primeiro-ministro, Justin Trudeau, chegou ao poder em 2015, ele prometeu dar prioridade às recomendações da comissão. No entanto, nos últimos anos, pouca coisa foi feita.
Na quinta-feira, Trudeau chamou as descobertas em Saskatchewan e na Colúmbia Britânica de "parte de uma tragédia maior", citando os legados de "racismo sistêmico, discriminação e injustiça que os povos indígenas enfrentaram" no Canadá. O premiê prometeu ampliar os esforços para encontrar mais cemitérios clandestinos e valas comuns.
Em comunicado, o governador da Província de Saskatchewan, Scott Moe, previu que restos mortais de mais crianças poderiam ser encontrados. "Infelizmente, mais reservas de Saskatchewan experimentarão o mesmo choque e desespero à medida que a busca pelas sepulturas continua", disse.
Não se sabe a causa da morte das crianças. Doenças, incluindo o surto de gripe espanhola há um século, muitas vezes atingiam os dormitórios superlotados. Mas os relatos dados à comissão foram um show de horrores. Antigos alunos testemunharam a incineração de corpos de bebês recém-nascidos de meninas que eram engravidadas por padres e monges.
A Comissão da Verdade diz que a Igreja Católica, que gerenciava cerca de 70% dos internatos, deveria pedir desculpas. No entanto, apesar de um apelo pessoal de Trudeau ao Vaticano, o papa Francisco ainda não se mexeu, ao contrário da Igreja Unida do Canadá, a maior denominação protestante do país, que pediu perdão por seu papel na administração das escolas, em 1986. (Com agências internacionais).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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