A trajetória da democracia venezuelana morro abaixo em mais de 20 anos de chavismo é longa, cheia de acidentes e nuances. Neste período, o traço comum que une o desmonte da democracia no país é a sucessão de alterações nas regras eleitorais.
Hugo Chávez tornou-se presidente em 1998, em uma eleição marcada pela descrença na política. Sua rival era uma miss. Os partidos tradicionais tinham perdido o apelo popular, após quase 50 anos de uma democracia marcada pela profunda desigualdade social e uma elite de origem europeia praticamente divorciada da maioria mestiça da população. A chamada Quarta República estava em crise.
A solução de Chávez para o problema foi simples: criar uma Quinta República para refundar o país. Os mais pobres, indígenas e camponeses teriam vez numa democracia social e participativa. O povo teria voz em questões importantes, por meio de referendos e plebiscitos. Mas, para isso, a Venezuela precisaria de uma nova Constituição.
"O processo de controle institucional do chavismo foi lento, não foi imediato. Porque Chávez ganhou as eleições, mas não controlava as instituições judiciais, parlamentares, nem a imprensa", explica o cientista político Luis Vicente León, do Instituto Datanálisis. "Quando Chávez propõe a Constituinte, pressionando o Supremo, ele passa por cima dessas instituições, aproveita a maioria popular que tinha e coloniza as instituições de uma maneira muito diferente das ditaduras clássicas: com o poder de sua popularidade. E aí sim ele começa a tomar as instituições uma a uma."
Como resultado, a bancada chavista na Constituinte era imensa. Com 65,8% dos votos, o governo e seus aliados elegeram 92% dos deputados que desenharam a Carta. Isso foi possível graças ao modelo de lista, no qual um eleitor de cada Estado votava nos candidatos de sua preferência. A contagem final de votos determinava os eleitos. A opção chavista por defender o voto em bloco em seus candidatos, puxados por nomes de relevância nacional, contra uma oposição fragmentada, também foi decisiva.
Luis Silva, deputado da Ação Democrática pelo Estado de Bolívar, é crítico do modelo de listas adotado desde o início do chavismo. "A primeira coisa que Chávez fez foi mudar a representação proporcional da minoria. Assim, o governo conseguiu muito mais deputados do que teve de votos", diz. "Desta maneira, a oposição começou a ficar muito vulnerável neste tipo de eleição."
As bases da Constituição de 1999 de certa maneira já enfraqueciam o equilíbrio de poderes: o vice-presidente passaria a ser nomeado, o Senado foi extinto, os mandatos executivos aumentaram em duração e a prática de referendos tornou-se corriqueira.
Depois da Constituinte, Chávez e o chavismo emendaram sequências impressionantes de vitórias nas urnas: as eleições presidenciais de 2000, 2006 e 2012. O referendo revogatório de 2004, as eleições regionais de 2000, 2004, 2008 e 2012 e as eleições legislativas de 2000, 2005 e 2010.
"No começo, Chávez não precisava das instituições que colonizou para fraudar nada porque ele era muito popular. E, sabendo disso, ele manteve esse controle quando teve a oportunidade porque o futuro poderia ser diferente. Como de fato foi", acrescenta León.
A única derrota do presidente foi o referendo em 2007 no qual Chávez pedia para ter direito a disputar mais um mandato. Por 51% a 49% o líder bolivariano teve sua única derrota eleitoral. Dois anos depois, ele tentou de novo. E venceu.
Ainda crente na via democrática, a oposição resolveu em fins de 2010 se unir e se fortalecer tendo como objetivo capturar o Parlamento. Àquela altura, acreditava-se que um contrapeso no Legislativo poderia conter o chavismo. Já com maioria no Conselho Nacional Eleitoral no entanto, o governo patrocinou um redesenho dos distritos eleitorais, com o objetivo de facilitar a vitória de seus candidatos. A MUD conquistou 47% dos votos, e teve 65 deputados eleitos. O chavismo, com 0,9 ponto porcentual a mais dos votos, elegeu 98 parlamentares.
Silva conta que distritos rurais chavistas passaram a eleger mais deputados apesar de sua menor densidade populacional, enquanto distritos urbanos foram redesenhados para dar mais chance a candidatos do governo em áreas onde a oposição era mais forte. "Jogando com essa engenharia eleitoral, o chavismo mexeu com a vontade popular", diz.
Violações
Até a morte de Chávez, em 2013, sua popularidade - e o ciclo das commodities - sustentavam o chavismo. Sem o presidente e sem dinheiro, o movimento bolivariano passou a ignorar as regras de sua Constituição.
A oposição ganhou força, de olho nas eleições legislativas de 2015. O chavismo, então, sofreu sua segunda derrota. A MUD conseguiu a maioria de 2/3, com a qual seria possível nomear juízes, aprovar mudanças constitucionais e conter a hegemonia bolivariana. Então, a Justiça eleitoral impugnou três dos deputados opositores.
"A oposição acreditou na via eleitoral até 2015. E efetivamente nos unimos e conseguimos dois terços dos deputados na Assembleia", lembra Silva. "Mas uma manobra chavista impugnou três deputados do Estado de Amazonas. Posteriormente, depois de nos eliminar judicialmente, o TSJ declarou a Assembleia em desacato, invalidando a vontade do eleitor."
Seguiu-se uma situação inusitada. A oposição se reunia, debatia, mas não tinha poder de aprovar nenhum projeto de lei. Com a radicalização do chavismo, cada vez mais impopular e sem dinheiro, até o Palácio Legislativo foi invadido e os opositores, agredidos.
Milícias
Em 2017, Maduro decidiu convocar uma nova Assembleia Constituinte. Dessa vez, as mudanças nas regras favoreceram ainda mais o governo. A oposição, então, decidiu boicotar o processo.
Este é o ponto em que muitos analistas costumam dizer que a Venezuela se transformou em uma ditadura. Hoje, o país segue ainda mais depauperado, devastado pela pandemia e pelas sanções de Estados Unidos e União Europeia.
"A população sabe que precisa de eleições para mudar alguma coisa, mas com o governo controlando as instituições, como nos últimos anos, é inviável e, por isso, a participação e a confiança é muito fraca", afirma León.
Maduro mantém-se no poder graças ao apoio dos militares e das milícias armadas chavistas, que em muitas ocasiões intimidavam de porta em porta os eleitores para dar um ar legítimo às eleições, do atual presidente. Foi o que ocorreu em 2018, numa disputa amplamente desacreditada e marcada por denúncias de fraude. Armados, os chefes dos coletivos iam em bairros pobres "convencer" a população indiferente ao chavismo a votar. Outro mecanismo é a vinculação dos programas sociais chavistas aos deveres eleitorais, ainda que o voto no país não seja obrigatório. A "carteira da pátria" é um sistema de identificação eleitoral paralelo criado pelo chavismo para monitorar, e assim estimular, a participação nas urnas com base em gratificações como cestas básicas.
No caso dos militares, a presença cada vez maior de oficiais da ativa no governo e em setores da economia é uma marca da gestão Maduro. A Força Armada venezuelana conta com mais de mil generais, muitos deles à frentes de empresas estatais e ministérios.
Há denúncias frequentes de corrupção, contrabando e até narcotráfico entre os militares, principalmente na área de fronteira entre Venezuela e Colômbia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Hugo Chávez tornou-se presidente em 1998, em uma eleição marcada pela descrença na política. Sua rival era uma miss. Os partidos tradicionais tinham perdido o apelo popular, após quase 50 anos de uma democracia marcada pela profunda desigualdade social e uma elite de origem europeia praticamente divorciada da maioria mestiça da população. A chamada Quarta República estava em crise.
A solução de Chávez para o problema foi simples: criar uma Quinta República para refundar o país. Os mais pobres, indígenas e camponeses teriam vez numa democracia social e participativa. O povo teria voz em questões importantes, por meio de referendos e plebiscitos. Mas, para isso, a Venezuela precisaria de uma nova Constituição.
"O processo de controle institucional do chavismo foi lento, não foi imediato. Porque Chávez ganhou as eleições, mas não controlava as instituições judiciais, parlamentares, nem a imprensa", explica o cientista político Luis Vicente León, do Instituto Datanálisis. "Quando Chávez propõe a Constituinte, pressionando o Supremo, ele passa por cima dessas instituições, aproveita a maioria popular que tinha e coloniza as instituições de uma maneira muito diferente das ditaduras clássicas: com o poder de sua popularidade. E aí sim ele começa a tomar as instituições uma a uma."
Como resultado, a bancada chavista na Constituinte era imensa. Com 65,8% dos votos, o governo e seus aliados elegeram 92% dos deputados que desenharam a Carta. Isso foi possível graças ao modelo de lista, no qual um eleitor de cada Estado votava nos candidatos de sua preferência. A contagem final de votos determinava os eleitos. A opção chavista por defender o voto em bloco em seus candidatos, puxados por nomes de relevância nacional, contra uma oposição fragmentada, também foi decisiva.
Luis Silva, deputado da Ação Democrática pelo Estado de Bolívar, é crítico do modelo de listas adotado desde o início do chavismo. "A primeira coisa que Chávez fez foi mudar a representação proporcional da minoria. Assim, o governo conseguiu muito mais deputados do que teve de votos", diz. "Desta maneira, a oposição começou a ficar muito vulnerável neste tipo de eleição."
As bases da Constituição de 1999 de certa maneira já enfraqueciam o equilíbrio de poderes: o vice-presidente passaria a ser nomeado, o Senado foi extinto, os mandatos executivos aumentaram em duração e a prática de referendos tornou-se corriqueira.
Depois da Constituinte, Chávez e o chavismo emendaram sequências impressionantes de vitórias nas urnas: as eleições presidenciais de 2000, 2006 e 2012. O referendo revogatório de 2004, as eleições regionais de 2000, 2004, 2008 e 2012 e as eleições legislativas de 2000, 2005 e 2010.
"No começo, Chávez não precisava das instituições que colonizou para fraudar nada porque ele era muito popular. E, sabendo disso, ele manteve esse controle quando teve a oportunidade porque o futuro poderia ser diferente. Como de fato foi", acrescenta León.
A única derrota do presidente foi o referendo em 2007 no qual Chávez pedia para ter direito a disputar mais um mandato. Por 51% a 49% o líder bolivariano teve sua única derrota eleitoral. Dois anos depois, ele tentou de novo. E venceu.
Ainda crente na via democrática, a oposição resolveu em fins de 2010 se unir e se fortalecer tendo como objetivo capturar o Parlamento. Àquela altura, acreditava-se que um contrapeso no Legislativo poderia conter o chavismo. Já com maioria no Conselho Nacional Eleitoral no entanto, o governo patrocinou um redesenho dos distritos eleitorais, com o objetivo de facilitar a vitória de seus candidatos. A MUD conquistou 47% dos votos, e teve 65 deputados eleitos. O chavismo, com 0,9 ponto porcentual a mais dos votos, elegeu 98 parlamentares.
Silva conta que distritos rurais chavistas passaram a eleger mais deputados apesar de sua menor densidade populacional, enquanto distritos urbanos foram redesenhados para dar mais chance a candidatos do governo em áreas onde a oposição era mais forte. "Jogando com essa engenharia eleitoral, o chavismo mexeu com a vontade popular", diz.
Violações
Até a morte de Chávez, em 2013, sua popularidade - e o ciclo das commodities - sustentavam o chavismo. Sem o presidente e sem dinheiro, o movimento bolivariano passou a ignorar as regras de sua Constituição.
A oposição ganhou força, de olho nas eleições legislativas de 2015. O chavismo, então, sofreu sua segunda derrota. A MUD conseguiu a maioria de 2/3, com a qual seria possível nomear juízes, aprovar mudanças constitucionais e conter a hegemonia bolivariana. Então, a Justiça eleitoral impugnou três dos deputados opositores.
"A oposição acreditou na via eleitoral até 2015. E efetivamente nos unimos e conseguimos dois terços dos deputados na Assembleia", lembra Silva. "Mas uma manobra chavista impugnou três deputados do Estado de Amazonas. Posteriormente, depois de nos eliminar judicialmente, o TSJ declarou a Assembleia em desacato, invalidando a vontade do eleitor."
Seguiu-se uma situação inusitada. A oposição se reunia, debatia, mas não tinha poder de aprovar nenhum projeto de lei. Com a radicalização do chavismo, cada vez mais impopular e sem dinheiro, até o Palácio Legislativo foi invadido e os opositores, agredidos.
Milícias
Em 2017, Maduro decidiu convocar uma nova Assembleia Constituinte. Dessa vez, as mudanças nas regras favoreceram ainda mais o governo. A oposição, então, decidiu boicotar o processo.
Este é o ponto em que muitos analistas costumam dizer que a Venezuela se transformou em uma ditadura. Hoje, o país segue ainda mais depauperado, devastado pela pandemia e pelas sanções de Estados Unidos e União Europeia.
"A população sabe que precisa de eleições para mudar alguma coisa, mas com o governo controlando as instituições, como nos últimos anos, é inviável e, por isso, a participação e a confiança é muito fraca", afirma León.
Maduro mantém-se no poder graças ao apoio dos militares e das milícias armadas chavistas, que em muitas ocasiões intimidavam de porta em porta os eleitores para dar um ar legítimo às eleições, do atual presidente. Foi o que ocorreu em 2018, numa disputa amplamente desacreditada e marcada por denúncias de fraude. Armados, os chefes dos coletivos iam em bairros pobres "convencer" a população indiferente ao chavismo a votar. Outro mecanismo é a vinculação dos programas sociais chavistas aos deveres eleitorais, ainda que o voto no país não seja obrigatório. A "carteira da pátria" é um sistema de identificação eleitoral paralelo criado pelo chavismo para monitorar, e assim estimular, a participação nas urnas com base em gratificações como cestas básicas.
No caso dos militares, a presença cada vez maior de oficiais da ativa no governo e em setores da economia é uma marca da gestão Maduro. A Força Armada venezuelana conta com mais de mil generais, muitos deles à frentes de empresas estatais e ministérios.
Há denúncias frequentes de corrupção, contrabando e até narcotráfico entre os militares, principalmente na área de fronteira entre Venezuela e Colômbia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.