Uma mãe, sua filha e uma boneca passam por uma transformação com véus muçulmanos, por meio de nove imagens, até estarem completamente cobertas por burcas e, finalmente, desaparecerem por completo.
Criada em 2010 pela fotógrafa iemenita Boushra Almutawakel, a obra voltou a circular em meio à crise no país sob a legenda "desaparecimento".
A repercussão surpreendeu a própria autora, considerada uma defensora dos direitos da mulher e uma pioneira no mundo muçulmano.
"Passei de 1.500 seguidores a 20.000 em dois dias, é uma loucura", disse ela de Dubai, onde atualmente mora com sua família, à BBC Mundo, serviço de notícias em língua espanhola da BBC.
A artista admite, contudo, ter "sentimentos contraditórios" em relação aos acontecimentos dos últimos dias.
Embora feliz com o fato de que seu trabalho esteja tendo impacto, ela acha que ele foi mal interpretado e tem sido usado como uma forma de criticar o Islã e o uso do véu (ou hijab).
Nesta entrevista, Almutawakel fala sobre a mensagem intencionada por sua obra e afirma que a "misoginia patriarcal" não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, mas "em toda parte".
BBC Mundo - Suas fotografias, em especial a série 'Mãe, Filha e Boneca', foram amplamente compartilhadas nas redes sociais nos últimos dias. Qual a mensagem da obra?
Boushra Almutawakel - É um comentário sobre a misoginia patriarcal. Medo, controle e intolerância. O que será necessário para que esses extremistas aceitem as mulheres; quantas camadas serão necessárias?
A sensação é que a única coisa que os deixará felizes é que as mulheres sejam de fato invisíveis.
Eu venho do Iêmen, um país que sempre foi muito conservador. A partir dos anos 80, contudo, cresceu a influência do wahabismo, da Arábia Saudita, e eu pessoalmente senti que as coisas estavam ficando muito extremas.
E, para mim, isso não tem nada a ver com o Islã. Antes, os véus eram coloridos. Cada aldeia tinha seu próprio véu. Em algumas aldeias, as mulheres nem cobrem o rosto.
Não sou contra o hijab. Se fosse assim, teria aberto a série com uma mulher de biquíni. Mas onde está escrito que uma menina de 5 anos deve cobrir o cabelo?
É como se a cultura fosse muito mais forte do que a religião. Há muitas coisas maravilhosas em nossa cultura, mas a parte misógina, a parte extremista, de cobrir completamente as mulheres, escondê-las, usá-las como propriedade, não faz parte do Islã.
BBC Mundo - Algumas pessoas têm usado as suas fotos para criticas o Islã de forma geral. Como vê isso?
Almutawakel - É definitivamente um uso indevido e uma deturpação, porque a série "Mãe, Filha e Boneca" faz parte do meu trabalho como muçulmana, como árabe, como mulher iemenita usando o hijab.
Quando eu volto para casa (para o Iêmen), eu uso o hijab. Fui alvo de muito ódio, principalmente de mulheres árabes que me dizem que sou contra o Islã e o hijab.
E esse era o medo que eu tinha de exibir meu trabalho no Ocidente — algumas pessoas da direita usaram meu trabalho para mostrar como as mulheres islâmicas estariam sendo oprimidas.
E meu trabalho não é sobre o Islã, é sobre extremismo. É sobre a misoginia patriarcal, que não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, está em toda parte.
BBC Mundo - Você tem sentimentos contraditórios em relação à repercussão da obra?
Almutawakel - Sim. Fico feliz que as pessoas estejam vendo meu trabalho, mas estou um pouco chateada, porque é como se as pessoas estivessem usando meu trabalho para reforçar uma mensagem que elas querem passar.
Muçulmanos e árabes pensam que estou do lado do Ocidente, que sou contra o Islã. Mas isso vem do uso incorreto e deturpado da obra.
E não estou falando pelas mulheres afegãs. Elas podem falar por si próprias. Eu acredito que as pessoas devem escutar, e não falar em nome dos outros.
E é isso que acontece com o Ocidente. Sei que a intenção é positiva, mas também queremos nos salvar a nós mesmas, e temos voz. O Ocidente não pode continuar a falar por nós.
As mulheres afegãs precisam se manifestar. E tenho certeza que elas vão. Elas têm vozes, são fortes.
BBC Mundo - Qual papel então deveria ter o Ocidente em crises como a que acontece no Afeganistão?
Almutawakel - O Ocidente não precisa nos salvar. De todo modo, o Ocidente nos destruiu. O Talebã foi criado pelos Estados Unidos para que pudessem lutar contra os soviéticos.
E eles deixaram o Talebã para o povo afegão. Quem precisa deles? Que tipo de mundo é esse? Eu gostaria que o Ocidente ficasse fora de nossos países, incluindo o meu. Eles destruíram o Oriente Médio em todos os aspectos.
BBC Mundo - A possibilidade de a crise no Afeganistão aumentar ainda mais a islamofobia a preocupa?
Almutawakel - Claro que preocupa. E claro que aumenta. Mas a islamofobia existe com ou sem o Talebã, vem desde 11 de setembro de 2001.
Se não existissem os talebãs, buscariam outra coisa para alimentar essa propagando que dissemina que o Islã é o mal. Muito disso infelizmente tem a ver com ignorância, medo e incompreensão.
BBC Mundo - Qual a inteção por trás da série "What if..." ("E se..."), que mostra um homem usando uma burca?
Almutawakel - Não estava tentando provocar. Enquanto estava na faculdade nos Estados Unidos, passei por uma fase religiosa e usei o hijab por um ano.
Lembro-me de quando era verão, eu sentada ali, suando, e vi os jovens árabes muçulmanos de shorts... pessoalmente, aquilo não fazia sentido para mim. Então eu tirei [o véu].
E pensei: como seria o contrário? Se os homens fossem os únicos a usar o hijab. Era uma pergunta surreal que eu queria traduzir por meio de fotos.
Lembro que expus a série no Museu Nacional do Iêmen. E, para minha grande surpresa, muitas mulheres adoraram. Acho que quase todos os homens detestaram.
Lembro-me de uma briga com um médico que estudou nos Estados Unidos. Ele me perguntava: o que você está tentando dizer? Que os homens devem ser mulheres? Você está questionando o que Deus disse? Ele levou isso muito a sério.
BBC Mundo - Você viveu por vários anos na França, um dos países que proibiu o uso da burca publicamente. Como foi a experiência?
Almutawakel - É muito contraditório. O lema da França é igualdade, liberdade e fraternidade, mas a realidade é outra.
Os muçulmanos são uma minoria, são marginalizados. E eles focam nas mulheres, as mais marginalizadas, as mais vulneráveis, é como uma forma de extremismo, mas na outra direção.
Parece horrível para mim, ainda mais horrível porque o Ocidente foi educado na modernidade, com base na liberdade e na liberdade de expressão. Mas não é verdade. Simplesmente não é verdade.
BBC Mundo - Qual sua opinião sobre o intenso debate em torno do véu?
Almutawakel - Não estamos focando nos reais problemas. Sempre se diz às mulheres o que fazer, para usar o hijab ou tirá-lo, ser magra, ser jovem... Deixem-nos em paz!
Veja o que é a indústria de maquiagem e do bem-estar. Os bilhões de dólares que circulam aí. As mulheres passam por cirurgias plásticas e morrem de fome para ficarem magras. Essa também é uma forma de opressão.
Muitas das mulheres que se cobrem são médicas, políticas, escritoras, advogadas, artistas. E elas são fortes. Não porque seu rosto ou seu corpo estejam cobertos, mas por seu intelecto.
Algumas pessoas no Ocidente veem uma mulher com véu e imediatamente presumem que ela está oprimida e precisa ser salva. Mas nem todas as mulheres que usam hijab são oprimidas. E não estou falando pelas mulheres afegãs, mas pelas iemenitas e por mim.
BBC Mundo - Você se preocupa com a supressão de direitos das mulheres pelo avanço dos talebãs no Afeganistão?
Almutawakel - Sim, claro, tenho medo como todo mundo. As coisas que aconteceram no passado, mulheres que levam tiros, que são tiradas da escola, de seus empregos, que são mortas, é horrível.
Qualquer forma de fundamentalismo, de extremismo, onde não haja espaço para flexibilidade, para discussão, para diálogo, é assustador.
No entanto, acho que estamos vivendo uma época diferente, porque agora temos telefones celulares e redes sociais, e eles não podem fazer as coisas como antes.
Também acredito que desta vez muitas mulheres lutarão mais. Tiveram 20 anos de vida melhor e são fortes, ambiciosas e capazes. Eu tenho fé nelas.
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