Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

'Perdi amizades por ter me vacinado': relatos de brasileiros na Flórida


“Sinceramente, desisti de entender. Então, aceitei, bloqueei (no telefone) e pronto. Melhor assim.” O tom conformado é da mineira Fabíola Vaz, de 48 anos, que vive há uma década em Miami, na Flórida, estado que desde o início de agosto se tornou o epicentro da COVID-19 nos Estados Unidos. A situação a que a empresária se refere é o rompimento de três amizades por um motivo peculiar: a vacina contra o novo coronavírus.





“Difícil de acreditar, mas essas pessoas se afastaram de mim porque eu confio na ciência e, é claro, me protegi”, conta a belo-horizontina, mostrando prints do derradeiro diálogo com um dos (agora ex) amigos negacionistas via SMS. “Tenho zero intenção de tomar (vacina). Não vou nem considerar essa possibilidade até ver como ela afetará a população em ao menos três anos. Sequer pretendo encontrar pessoas que tenham se vacinado”, argumenta o americano nas mensagens.
 


A postura explica, em parte, o cenário caótico instalado desde julho na Flórida. A chegada da variante Delta, aliada à gestão negacionista da epidemia pelo governador republicano Ron DeSantis, levou a federação a responder por 15% dos casos no país. Só na sexta-feira (27/08) foram 21.680 novos infectados pela virose, o equivalente a 79% das contaminações registradas em todo o Brasil no mesmo período. Atualmente, um em cada cinco americanos mortos pela doença são da Flórida, embora a região concentre apenas 6% da população. 

Um em cada cinco americanos mortos atualmente por COVID-19 são da Flórida (foto: CHANDAN KHANNA/AFP)
Nos hospitais, o quadro também é crítico. Números oficiais mostram que as hospitalizações no estado quase triplicaram em julho. Diante da situação, o prefeito de Orlando, Buddy Dyer, chegou a pedir aos habitantes parcimônia no consumo de água a fim de reduzir a demanda por oxigênio na cidade, já que o insumo é necessário tanto para purificar a água potável, quanto para tratar pacientes internados.





98% dos mortos não foram vacinados

O maior apelo das autoridades, contudo, é pela adesão à campanha de vacinação, já que, segundo o conselheiro sanitário do presidente Joe Biden, Andy Slavitt, mais de 98% dos óbitos e a maior parte das internações afetam os não vacinados. No geral, 52% dos floridenses estão totalmente protegidos, mas o índice é inferior a 30% em alguns dos condados mais afetados do estado, como Taylor e Highlands.



Para tentar elevar a cobertura vacinal, na segunda-feira (23/08), setenta profissionais de saúde do condado de Palm Beach se reuniram para uma entrevista coletiva. No evento, praticamente imploraram aos floridenses que procurassem os postos de imunização, enfatizando que o sistema de saúde está completamente estrangulado. 

Só na sexta-feira (27/08) foram 21.680 novos infectados pela COVID-19 na Flórida: 79% das contaminações no Brasil (foto: CHANDAN KHANNA/AFP)

“Não tenho dúvidas de que a vacina salvou minha vida. Eu tomei duas doses da Pfizer em abril e, ainda sim, peguei a doença, mas não precisei de hospitalização. De todo modo, os sintomas me derrubaram, fiquei muito mal. Mas se eu não estivesse imunizada, a esta altura, certamente, estaria intubada, quem sabe morta”, comenta a mineira Fabíola Vaz. 





Brasileiro relata alto custo das internações

Funcionário do Departamento de Saúde West Palm Beach, o dentista gaúcho Paulo Arthur Oliveira, de 51, foi recrutado pelo governo americano para atuar na linha de frente da pandemia de março de 2020 a abril deste ano. “Fui liberado para retornar ao consultório há poucos meses. Mas fiquei um bom tempo testando a população. Depois, quando as vacinas chegaram, fiquei responsável pela preparação dos imunizantes, já que os produtos de cada laboratório exigem protocolos de conservação e manuseio diferentes”, explica.

Variante Delta e pessoas que se recusam a receber a vacina têm contribuído para a proliferação da COVID-19 na Flórida (foto: Joe Raedle/Getty Images/AFP)

Segundo o profissional de saúde, que vive na cidade de Delray Beach, é comum que os paramédicos recolham infectados em estado grave e tenham que permanecer por dias com o paciente dentro da ambulância por falta de vagas em hospitais. 

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“Felizmente, as ambulâncias são muito bem equipadas, quase UTIs. A má notícia é que aqui não tem uma estrutura semelhante ao Samu do Brasil, que é gratuito. Nos Estados Unidos, a pessoa paga até mesmo pelo transporte hospitalar de urgência. Mesmo se tiver seguro”, diz o dentista. 





"Recusar vacina é uma atitude muito egoísta"

A conta hospitalar também não é das mais baratas – com ou sem o amparo dos convênios médicos. “Numa emergência, a pessoa não deixa de ser socorrida, os hospitais são obrigados a atender. Mas a conta chega depois. Dependendo do período em que um paciente fica na UTI, por exemplo, as despesas podem levá-lo à ruína. Muitas contas hospitalares são impagáveis”, relata o gaúcho. 

Diante do alto custo da hospitalização, empresas americanas já impõem aumentos robustos nos seguros de saúde para não vacinados. É o caso da Delta Airlines. Na quarta-feira (25/08), a companhia aérea comunicou aos funcionários que aumentará as mensalidades do benefício em US$ 200 a partir de 1º de novembro para aqueles que não tomarem as injeções. “Acho justo. Recusar a vacina é uma atitude muito egoísta”, opina Paulo.  

Discurso político fez condados terem menos de 30% da população vacinada na Flórida (foto: CHANDAN KHANNA/AFP)

O dentista estende a crítica àqueles que se recusam a respeitar os protocolos sanitários. “Aqui na Flórida, em muitos lugares, é como se não houvesse pandemia. As pessoas se aglomeram e não usam máscara. Recentemente, fui a um show e fiquei impressionado. Os protocolos foram completamente ignorados pelo público.” 

O comportamento perigoso é incentivado pelo próprio governador do estado. Nas últimas semanas, quando os casos de COVID-19 explodiram, inclusive com maior hospitalização de crianças,  DeSantis assinou decreto para impedir as escolas de obrigarem alunos e funcionários a usarem máscaras. O político mantém a política que adotou no ano passado, quando foi um dos primeiros governadores a reabrir o comércio em meio à pandemia, atendendo aos apelos do então presidente Donald Trump.

Politização agrava crise sanitária

A politização da vacina na Flórida, estado onde os partidos Republicano e Democrata arrebanham, cada um, metade do eleitorado, irrita a consultora de seguros Cynthia Borkoski, de 47. “As pessoas precisam entender que os fatos científicos vão além das nossas preferências políticas. A politização em torno da vacina é insuportável”, diz a gaúcha, que mora em Miami há seis anos. 





Assim como Fabíola, ela diz que chegou a ter divergências com os amigos por causa da vacina contra a COVID. “Não foi uma briga, mas eu encerrei a conversa com um amigo um dia desses. Cortei o assunto e evito dar muita corda. Ele queria me convencer de que crianças não pegam, nem transmitem o vírus. Quando, na minha família, houve justamente um caso desses: meus sobrinhos pegaram a doença e a transmitiram aos meus pais”, diz Cynthia.



Ao atender à reportagem, a consultora passou por uma espécie de saia justa. Ela estava na casa de uma amiga, que, ao ouvir a conversa dela por telefone com a repórter, argumentou que não se vacinou, pois teve COVID e acredita que a infecção natural confere maior proteção que os imunizantes disponíveis no mercado. 

Trata-se de um mito. De acordo com o Centro de Controle de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, as respostas imunológicas produzidas pela vacinação são consideravelmente melhores do que aquelas proporcionadas após a infecção natural. (Colaborou Jaeci Carvalho)

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