Jornal Estado de Minas

VAGAS DE SOBRA

'Pacientes modelos' se oferecem como 'cobaias' em treinamentos de harmonização a botox



No Instagram, o anúncio de vagas para "pacientes modelo" apresenta uma situação em que aparentemente todos ganham: pessoas buscando fazer procedimentos estéticos conseguem realizá-los a preço de custo e, ao se oferecerem para se submeter a estes tratamentos em cursos, contribuem para o desenvolvimento de profissionais — que por sua vez podem treinar técnicas e produzir fotos e vídeos para divulgação na redes sociais.





Dezenas de vagas para pacientes modelo são divulgadas diariamente no Instagram por profissionais de saúde, clínicas e cursos. No Facebook, milhares de pessoas participam de grupos voltados para o anúncio destas oportunidades, onde há ofertas para procedimentos estéticos mais ou menos invasivos, desde o design de sobrancelha à aplicação de toxina botulínica, harmonização facial, rinomodelação e lipoaspiração de papada.

Na realidade, porém, a possibilidade de boas experiências para todos os lados envolvidos divide espaço com os riscos de um mercado informal sem qualquer regulamentação.

Especialistas entrevistados pela BBC News Brasil dizem que, hoje, este mercado traz insegurança jurídica para profissionais e, principalmente, coloca a pessoas que se submetem às vagas em uma posição vulnerável. Já há relatos de ex-pacientes modelos — alguns deles entrevistados pela reportagem — que denunciam complicações de saúde e falta de assistência após se submeterem a procedimentos para treinamento, chegando em alguns casos à Justiça.





Grande parte das vagas é oferecida por dentistas, para quem as portas para realização de procedimentos estéticos foram abertas após uma série de alterações na lei e em resoluções do Conselho Federal de Odontologia (CFO) nos últimos anos. Em nota enviada à BBC News Brasil, o CFO foi enfático ao dizer que "em conformidade com o Código de Ética Odontológica, essa prática (de trabalho com pacientes modelos) não é permitida em nenhuma hipótese".

Questionado se pacientes modelos teriam algum direito ou recomendação ao se submeter aos procedimentos, o CFO disse que "nenhum dos dois casos" é possível, "porque não existe nada estabelecido em lei" que preveja essa prática.

A reportagem também encontrou, em menor medida, vagas de paciente modelo oferecidas por médicos e biomédicos. Procurados, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Federal de Biomedicina (CFBM) não se manifestaram.





Enquanto os conselhos demonstram distância do assunto, no dia-a-dia os profissionais não são nada silenciosos quando o objetivo é conseguir pacientes modelos para seus cursos e treinamentos.

'Disponível para procedimentos'

"Bom dia, pessoal! Estamos selecionando 3 pacientes modelos para bichectomia. Todos os casos serão avaliados anteriormente. *Valor de custo*."

"Restam apenas 2 vagas! Seja paciente modelo. Botox, preenchimentos faciais, lipo de papada enzimática."

"Preciso de paciente modelo para botox (toxina botulínica) para portfólio."

Todos os dias, ofertas de intervenções estéticas como estas são postadas nas redes sociais — inclusive durante a pandemia de coronavírus, quando a recomendação das autoridades tem sido evitar deslocamentos, encontros e atividades não essenciais. Boa parte das postagens indica como próximo passo de contato o WhatsApp, através do qual pessoas interessadas em ser paciente modelo devem consultar preços de custo e enviar fotos para avaliação. Há também clínicas e cursos que oferecem em seus próprios sites formulários para inscrição de candidatos a pacientes modelos.

Além do anúncio de vagas por profissionais e empresas, no Facebook há pessoas que se oferecem espontaneamente para ser paciente modelo.

Foi a partir de uma dessas publicações, dizendo "disponível para lipo de papada", que a BBC News Brasil chegou a Jhonnattas Santos, 27 anos, analista de fraudes em um banco digital e morador de Osasco (SP).





Ele é um paciente modelo experiente: já fez aplicação de toxina botulínica, clareamento dental e bichectomia (remoção das bolas de Bichat, bolsas de tecido adiposo nas bochechas) com dentistas durante cursos ministrados para outros profissionais na capital paulista — com exceção do clareamento dental, feito em consultório apenas pelo profissional.


Jhonnattas Santos conta que pretende fazer várias intervenções no rosto e, para isso, 'o método mais acessível hoje é ser paciente modelo' (foto: Arquivo pessoal)

Jhonnattas diz que, embora não tenha gostado do resultado de todos os procedimentos que fez como paciente modelo, "nunca teve problemas". Para ele, esta prática é uma oportunidade.

"Se eu tivesse dinheiro, muito dinheiro, eu faria várias cirurgias. Eu pretendo fazer o nariz, implante, pretendo tirar o excesso de pele ao redor dos olhos", contou o analista de fraudes à BBC News Brasil por chamada de vídeo. "Muitos procedimentos você faz em busca da autoestima. Eu particularmente quero mudar meu rosto, não me sinto confortável com ele, e o método mais acessível hoje é ser paciente modelo."





"É uma oportunidade. Meus amigos falam: nossa, Jhon, você poderia guardar mais dinheiro e pagar um valor de mercado (como paciente regular). Mas eu acredito que tem profissionais fazendo um trabalho bem feito mesmo com paciente modelo", conta, acrescentando que amigas já fizeram procedimentos como os dele pagando regularmente e passaram pelo "mesmo protocolo" tanto durante a intervenção como nos cuidados posteriores.

Nessas três ocasiões, porém, ele conta não ter recebido qualquer tipo de contrato, termo ou documento alertando sobre riscos — formalização que seria essencial, segundo especialistas entrevistados (leia mais abaixo). Jhonnattas apenas preencheu e assinou um formulário em que informava se tinha alergias e outros problemas de saúde.

O jovem atribui suas experiências bem sucedidas à intensa pesquisa que faz antes de passar pelos procedimentos, observando comentários nos perfis de profissionais e clínicas, e também enviando mensagens para pessoas que já fizeram tratamentos nesses locais. Por ser tão pró-ativo neste mundo, Jhonnattas conta já ter recebido oito convites para ser paciente modelo.





"Não é só pelo valor que o profissional está te propondo que você vai no primeiro e faz. Não. Eu particularmente faço uma pesquisa de mercado, busco feedbacks, para depois fazer meu procedimento", diz.

Recentemente, Beatriz Cabral, 26 anos, analista de benefícios e moradora de São Paulo (SP), também postou no Facebook estar "disponível como paciente modelo", o que seria sua primeira experiência como uma. Como paciente regular, ela já fez duas cirurgias — colocação de prótese de silicone e abdominoplastia — e agora deseja "aumentar a boca, fazer bichectomia e lipo de papada". Ela tem amigas que já tiveram boas experiências como paciente modelo e há um ano começou a buscar vagas do tipo nas redes sociais.

Perguntada o que a atrai nestas oportunidades, ela respondeu: "O valor. E também não é um procedimento muito invasivo, porque os cirurgiões (plásticos) fazem em hospitais."

A BBC News Brasil consultou se a assessoria de imprensa do Facebook e do Instagram gostariam de se posicionar nesta reportagem, mas as empresas preferiram não se manifestar.





'Tive um livramento'


'Tinha um clima de ansiedade e apreensão, porque todas foram pegas de surpresa: ninguém imaginou que teria tanta gente', relata Ana (nome fictício) sobre sua experiência como paciente modelo, quando encontrou cerca de outras 100 pessoas na mesma situação que ela (foto: Getty Images)

Por outro lado, se pudesse dar um conselho para quem pretende ser paciente modelo, Ana (nome fictício, a pedido da entrevistada), 34 anos, diria: "corre".

Isso por conta da primeira e última vez que ela foi paciente modelo, em 2019, em um curso de rinomodelação com uma técnica anunciada como "patenteada" por uma dentista com a promessa de modelar o nariz com fios de PDO (polidioxanona). Ana diz que não só não teve o resultado desejado, como levou um susto com uma inflamação que teve no nariz e não teve assistência adequada da profissional. Hoje, ela está bem — o que diz ser um "livramento".

A mulher conta que acompanhava a dentista no Instagram, onde esta se apresenta apenas como "doutora", e ficou sabendo de vagas para rinomodelação em um curso que a profissional ministraria.

"Eu não queria fazer uma rinoplastia (procedimento cirúrgico) que mudasse o formato do meu nariz, que fosse muito invasivo. Eu me incomodava com o meu nariz quando eu sorria. Vi no Instagram que ela (a dentista) precisava de pacientes modelos e falei: legal, porque só pagaria o preço de custo e não é tão invasivo. Ela falava que as pessoas saíam do consultório andando, que um dia depois já podiam retomar a vida normal", contou à BBC News Brasil por telefone.





Ana então enviou fotos suas para a dentista através do WhatsApp, foi "selecionada" e fez um pagamento parcial para reservar sua vaga. No dia do curso dado pela profissional — e de sua rinomodelação —, ela viajou por cerca de duas horas de carro do interior de São Paulo até a capital e chegou a uma clínica onde estavam cerca de outras 100 pacientes modelo.

"Tinha um clima de ansiedade e apreensão, porque todas foram pegas de surpresa: ninguém imaginou que teria tanta gente. Teve meninas que vieram de ônibus, de bem mais longe", lembra, mencionando a desorganização e atrasos naquele dia.

"Lá embaixo, você ficava esperando a mercê, não podia sair, algumas pessoas reclamavam que estavam sem almoçar. Lá em cima (onde eram feitos os procedimentos), o clima… a palavra talvez seja de positividade. As pessoas da equipe eram extremamente alegres; ela (a dentista líder) vende que tudo está maravilhoso, te atende de uma maneira que você pensa: nossa, vai dar tudo certo, vai ficar maravilhoso."





Apesar do cenário positivo protagonizado pelos organizadores do curso, Ana descreve o ambiente de outra forma.

"Era tudo junto, tinha umas baias, era tipo um abatedouro: várias ali ao mesmo tempo sendo anestesiadas e passando pelo procedimento."

A mulher conta que um dentista em treinamento se apresentou para ela, fez perguntas básicas sobre alergias e começou a fazer um procedimento "bem invasivo", com sutura e anestesia — diferente do que ela esperava. Quando tinha dúvidas, o profissional em treinamento chamava a dentista que liderava o curso para fazer perguntas.

Ao fim, embora todos ao seu redor dissessem que o resultado tinha ficado "maravilhoso", Ana estava assustada com a dor que sentia. Nos cinco dias seguintes, ela ficou de cama, com o nariz inchado, e só conseguia contato virtual com a dentista, que morava em outro Estado.





"O pós era muito deficiente: você mandava uma mensagem de manhã perguntando se o inchaço e os sangramentos eram normais, e eles só respondiam à noite."

Com o tempo e remédios, os fios foram soltando e a inflamação, diminuindo. Hoje, Ana diz ter ficado sem resultados e com duas protuberâncias na parte interna do nariz: "Não sei se o profissional não soube aplicar a técnica, ou se a técnica não funciona mesmo."

"Mas tive um livramento. Não tive o resultado, mas tudo bem, porque eu também não tive nenhuma sequela. Poderia ter tido, né?"

Olhando para a situação passada, Ana avalia que faltou se perguntar: "será que (a oferta) é isso tudo mesmo?"

"Eu via pelas redes que ela (a dentista) postava o antes e o depois dos pacientes, e você não via nenhuma reclamação. Eu até pesquisei, mas como era muito o começo da técnica, não tinha muita informação."

Apesar de dizer que faltou acionar seu "desconfiômetro", Ana relata que teve um breve momento naquele dia tumultuado que logo a deixou com uma pulga atrás da orelha: quando assinou um contrato reconhecendo que estava sendo submetida a um procedimento como paciente modelo e que tomaria os cuidados devidos no pós-operatório. Ao solicitar uma via para ela, uma atendente disse que não havia papéis suficientes para isso.





"Teve essa questão do contrato, e eu fiquei cismada. O tempo vai passando, e você fala: gente, vou embora, o que eu estou fazendo aqui? Mas eu falei: poxa, eu já tô aqui. E quando você sobe, você é tão bem recebida, que parece que vai dar tudo certo."

Hoje, Ana diz que "jamais, jamais, jamais seria paciente modelo de novo."

"Você fica muito sozinha. Se você contrata um médico para a realização de um serviço, parece que é mais legítimo procurar e lidar diretamente com o profissional. Agora, quando você está naquele mutirão, você fica sozinha. Depois, no seu pós, você fica abandonada, naquele limbo sem saber se o que está sentindo é normal ou não é. Quem vai ter dar um respaldo? É melhor você pagar um pouco mais e ter mais direito a exigir", afirma.

'Pode acontecer mil coisas'


Duas entrevistadas pela BBC News Brasil que foram pacientes modelos durante cursos reclamaram da falta de assistência após terem complicações (foto: Getty Images)

Moradora da cidade do Rio de Janeiro (RJ), Laura (nome fictício, a pedido) também teve uma experiência ruim que não a faz descartar totalmente ser paciente modelo de novo, mas que definitivamente a ensinou a tomar certos cuidados.





Em 2020, ela foi paciente modelo de uma biomédica que aplicou toxina botulínica no seu rosto; segundo Laura, esta foi uma experiência "mais tranquila". Ela conta ter tido problemas neste ano, quando se submeteu à aplicação de ácido hialurônico nas olheiras em um curso ministrado por uma dentista.

Antes do procedimento, o contato com a organização do curso foi todo virtual. Laura foi avisada que as pacientes modelo seriam atendidas por ordem de chegada.

Logo depois da aplicação do que foi apresentado como ácido hialurônico, ela diz ter sentido muita dor. Aí veio a desconfiança.

"Vem a professora, marca você, tira foto, diz que você vai ficar linda. Fica aquela visão toda, e você se desliga, sabe?", contou à BBC News Brasil por telefone. "Depois que eu saí, pensei: caramba, nem perguntei o que (produto) eles tinham colocado. Fiquei mega preocupada."





No dia seguinte à intervenção no rosto, Laura começou a pedir a nota fiscal e informações do produto usado — coisas que ela tinha recebido na primeira vez que foi paciente modelo, com a aplicação de toxina botulínica. Já no procedimento deste ano, o mesmo contato no WhatsApp com quem ela se comunicou para marcar a aplicação do ácido hialurônico deixou de respondê-la quando ela passou a cobrar assistência.

"Eu tentei ligar, ninguém atendeu. Fui lá (no local onde o curso tinha acontecido) e estavam completamente fechados: eles fazem um dia e depois fecham a sala."

A mulher diz ter ficado sem assistência e hoje tem uma espécie de buraco na olheira. Nem passou pela cabeça reivindicar medidas mais drásticas como uma ação judicial, pois ela diz ter errado em assinar papéis que ficaram apenas com os organizadores do curso, sem uma via para ela. Hoje, ela avalia que os documentos assinados tinham a função, para os organizadores do curso, de tirar "qualquer responsabilidade do que ia acontecer".

"Podia ter dado mais errado. Deu errado visualmente: eu não gostei do resultado depois. Mas eu corri o risco de ter uma coisa mais séria, que eu fosse de repente parar no hospital."

Laura diz que só seria paciente modelo de novo se fosse com um profissional ou em um curso pelos quais outra pessoa já tivesse passado e indicasse.





"Ir sozinha, do jeito que eu fui… é muito fácil ficar preocupada agora", desabafa. "Você está sempre sujeito a acontecer alguma coisa. Ou é o material que eu não sei de onde veio, ou a mão da pessoa que ainda não está treinada o suficiente. É mais barato? É. Mas pode acontecer mil coisas."

Casos na Justiça contra dentista

A desconfiança com a autenticidade de produtos apresentados como ácido hialurônico tem precedentes.

No início do ano, chegaram a jornais e a canais de televisão as acusações contra a dentista Giselle Gomes, que atendia em Campos dos Goytacazes (RJ) e é acusada de aplicar nos lábios e no nariz PMMA (polimetilmetacrilato) ou hidrogel em vez de ácido hialurônico — como dizia às pacientes. Esta atuação fez o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) denunciar Gomes por estelionato, lesão corporal grave e exercício ilegal da profissão de odontóloga. O MPRJ também conseguiu na Justiça a suspensão da habilitação profissional e a proibição do exercício profissional dela.

A BBC News Brasil entrou em contato com o advogado de Giselle Gomes, que preferiu não se manifestar.

A reportagem conversou com Andrea Paes, advogada de 32 pessoas que se dizem vítimas de Giselle Gomes atendidas entre 2018 e 2020 — duas delas foram pacientes modelos da dentista, que negociava estas vagas no Instagram e através da indicação de outros pacientes. Ela recebeu estas pacientes modelos em seu consultório e disse que aplicaria técnicas de harmonização facial que aprendera em um curso. Na rede social, Gomes também oferecia permutas para influenciadoras da internet, dando procedimentos gratuitos em troca de postagens, de acordo com Paes.





A permuta é vedada pelo Código de Ética Odontológica, que diz ser uma infração "oferecer trabalho gratuito com intenção de autopromoção ou promover campanhas oferecendo trocas de favores".

Andrea Paes relata que, após a aplicação do PMMA ou hidrogel, as vítimas ficaram com dor, manchas e deformidades. Uma influenciadora que fez uma permuta precisou passar por duas cirurgias para tirar o PMMA do nariz e dos lábios e "até hoje vive à base de corticoides", de acordo com a advogada.

As pacientes modelos e influenciadoras recebiam apenas um papel com orientações para cuidados posteriores ao procedimento, o que a advogada diz ser problemático.

"Tanto as modelos quanto os profissionais assumem o risco de uma responsabilidade civil, de um problema, sem saber no que isso vai parar. E a Justiça está bem severa nas punições indenizatórias quando há uma deformidade no rosto, inclusive quando há uma deformidade permanente", afirma Andrea Paes.





"A norma não diz: faça um contrato. Mas hoje, um bom profissional que quer se resguardar dos problemas que virão faz um contrato para se respaldar de uma responsabilidade civil."

Para a advogada, há um desequilíbrio problemático na relação entre profissionais e pacientes modelo — que não pagam regularmente.

"As pessoas se sentem um pouco constrangidas em perguntar: qual produto você vai usar? Está dentro da validade? Então, todo cuidado quando se fala em permuta, em paciente modelo, tem que ser tomado."

'Trato pacientes modelos igual ou melhor'


Treinamento com manequins é parte de formação de profissionais, mas não com pacientes modelo (foto: Getty Images)

A BBC News Brasil pediu entrevistas para dez profissionais, clínicas e institutos de treinamento que anunciaram vagas para pacientes modelo no Instagram na primeira semana de setembro, e apenas duas dessas fontes se disponibilizaram a conversar com a reportagem — as outras não responderam no WhatsApp nem atenderam ligações, ou adiaram repetidamente a entrevista.

Uma das profissionais que concedeu entrevista foi a cirurgiã-dentista Dany Moura, 44 anos, fundadora do curso de harmonização orofacial Harmony Face, na cidade do Rio de Janeiro. Ela diz que profissionais da sua área estão sob constante ataque, principalmente por médicos, e defende que o Brasil tem uma das "melhores odontologias do mundo", atraindo inclusive pacientes estrangeiros.





A dentista diz que bons profissionais trabalham eticamente com pacientes modelos — e que estes são fundamentais nos cursos livres oferecidos pela Harmony Face, onde os alunos são profissionais de saúde graduados e com registro profissional.

"A harmonização orofacial não é dada na grade da faculdade de odontologia", explica, afirmando que profissionais de outras áreas, como biomédicos e até médicos, também fazem seus cursos livres. "Como eles não têm esse contato na faculdade, é difícil só trabalhar em manequim de silicone, em manequim de resina. Então o paciente (modelo) é de suma importância porque eles (os alunos) conseguem ter contato com o procedimento que é dado na parte teórica."

Seu instituto, fundado há cerca de um ano e meio e cuja equipe totaliza quatro dentistas, já trabalhou com cerca de 100 pacientes modelos. Segundo Dany, eles chegam através de indicações e pelas redes sociais; passam por uma consulta presencial antes de serem submetidos a procedimentos no curso; assinam e recebem uma via de um termo de consentimento. A cirurgiã-dentista garante que ela e a equipe têm toda experiência e preparo para lidar com intercorrências — e comemora que isso até hoje não tenha acontecido.





"Os pacientes modelos, nos meus cursos, são tratados igual ou melhor do que os pacientes dentro do meu consultório, que me pagam integralmente. Porque eles estão ali se disponibilizando para que outros profissionais se capacitem", diz a cirurgiã-dentista, que além do curso tem seu próprio consultório, oferecendo vários tipos de tratamento odontológico.

"Na próxima turma, vou ter um curso e a minha madrinha, que é a minha segunda mãe, vai ser uma paciente modelo", acrescenta, demonstrando que o cuidado é tanto a ponto de incluir também familiares dela.

Já a biomédica Janaína Inácio, 26 anos, anunciou esses dias no Instagram a primeira vaga para paciente modelo que ela atenderá na clínica de uma colega em Contagem (MG). Antes, ela só havia trabalhado com esse tipo de paciente em cursos nos quais foi aluna.

A profissional diz que abriu a vaga buscando "enriquecer o portfólio" e "ter um contato com variações anatômicas" ao aplicar toxina botulínica em diferentes rostos.

"Através desse modelo de atendimento (paciente modelo) é possível atingir um público maior e com mais variações anatômicas. Olhando pra uma outra perspectiva, esse tipo de atendimento proporciona ao paciente modelo, incluindo pessoas que não teriam acesso (financeiro), um atendimento de qualidade com investimento mais baixo", avalia Janaína Inácio.





Se preparando para atender seu primeiro paciente modelo sozinha, fora de treinamentos, a biomédica diz já ter separado um termo de consentimento para leitura e assinatura, incluindo uma via para cada um dos lados.

Ela diz ter decidido usar o termo depois de pesquisar normas do Ministério do Saúde e ler o Código de Ética do Conselho Federal de Biomedicina (CFBM) — mas desabafa ter sentido falta de uma regulamentação mais direta sobre os pacientes modelos.

"Realmente, nessa questão de paciente modelo, não tem muitas regras. Mas eu trabalho com eles com as mesmas garantias do paciente normal", afirma.

"Como tem vários tipos de profissionais no mercado, principalmente pela grande procura dos procedimentos estéticos, a gente consegue se deparar com vários tipos de profissionais. Então, ter um uma regulamentação traz uma maior segurança tanto pro profissional quanto para o paciente."

'Não é ilegal'

Especialista em causas médicas e odontológicas, o advogado David Castro Stacciarini resume: não há ilegalidade no atendimento de pacientes modelos. Tampouco há leis ou normas infralegais regulamentando a prática.





Mas, para Stacciarini, ela esbarra em questões éticas que seriam da esfera de avaliação dos conselhos profissionais: por exemplo, a cobrança apenas do preço de custo dos procedimentos pode eventualmente ser interpretada como concorrência desleal. Os conselhos também têm regras bem delimitadas sobre postagens de resultados nas redes sociais, e é frequente que pacientes modelos apareçam em fotos de "antes e depois" do procedimento.

"Aponto questões éticas, porque não é ilegal o acordo privado entre as partes. O Código Civil não se interessa pela questão ética; quem se interessa pela questão ética é o Conselho de Medicina e o Conselho Odontológico. A ética, quem vai julgar é o conselho de classe", explica o advogado, se somando a outros entrevistados que apontam para a importância de um documento em particular.

"Teoricamente, o documento mais importante na relação e saúde é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou o Termo de Consentimento Informado. Esse documento vai falar dos riscos que o paciente pode vir a ter fazendo aquele procedimento. Posso ter sangramento? Posso ter hematoma? Posso ter necrose? Posso ter uma infecção? Posso ter uma embolia pulmonar? Posso morrer nesse procedimento? Esses riscos têm que ser bem mencionados e esclarecidos ao paciente."





O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é exigido, segundo uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em toda pesquisa científica envolvendo pessoas no Brasil — por exemplo, um estudo clínico que aplica vacinas experimentais contra a covid-19 em voluntários, ou uma pesquisa sociológica que realize entrevistas. Quem avalia os termos entregues e os protocolos de pesquisa é uma das 18 comissões do CNS, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), e suas instâncias regionais, os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). O CNS é vinculado ao Ministério da Saúde.

Recentemente, foi a desconfiança de divergências entre o protocolado na Conep e o que foi realizado na prática em estudos clínicos com a proxalutamida no Brasil que levou à suspensão, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da importação do medicamento. Estes estudos visavam testar o uso do remédio para tratamento da covid-19.

No termo, que deve ser escrito com uma linguagem clara, um participante de pesquisa reconhece que foi informado sobre os objetivos do estudo, seus benefícios e riscos. Também é documentado que o participante tem autonomia para escolher entrar ou se retirar a qualquer momento da pesquisa. O contrato traz ainda os nomes e contatos dos pesquisadores, que ficam com uma das vias — e o participante, com outra.





Acontece que a prática de atender os pacientes modelos está numa interseção obscura: tem traços de pesquisa científica, de ensino e de prática médica ou odontológica.

Conselheira da Conep, a fisioterapeuta Laís Souza explicou à BBC News Brasil que os pacientes modelos não são diretamente abarcados pelas normas que recaem sobre as pesquisas científicas, mas que os termos de consentimento usados nestas servem como referência. E, na verdade, ela diz que o consentimento é um processo: não se trata apenas de um papel, mas preferencialmente de um diálogo transparente entre as partes ao longo de suas trocas.

Souza lembra que, em 2016, o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução recomendando que os profissionais usassem o termo nos seus atendimentos em geral, "com o objetivo de proporcionar aos médicos maior segurança na tomada de decisões sobre assistência à saúde dos pacientes", segundo o documento.

"Isso começou com discussões em artigos científicos, na área da bioética, sobre a necessidade de começar a usar o termo não só na pesquisa, mas também na prática clínica", aponta Souza, acrescentando que, para os médicos, o termo pode ser uma proteção em eventuais processos judiciais abertos por pacientes.





'Nenhum médico pode usar o paciente ao seu bel-prazer'

Para o médico Dênis Calazans, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBPC), o mercado dos pacientes modelos como um todo é problemático — muito além da questão do termo de consentimento.

Por mais que muitas das vagas para pacientes modelos não sejam para intervenções invasivas como uma cirurgia plástica e nem ofereçam procedimentos que só médicos podem fazer, Calazans usa como ideal a residência médica, em que médicos graduados se especializam e, como parte do treinamento, tratam pacientes. Esta formação é controlada por um decreto de 1977 que regulamenta a residência médica e criou a Comissão Nacional de Residência Médica. O Conselho Federal de Medicina (CFM) também tem normas específicas para a residência médica.

"Qualquer tipo de procedimento médico deve ser realizado dentro de ambientes que gozem de todas as licenças da vigilância sanitária em ambientes preparados para tratamento de eventuais complicações que possam ocorrer", aponta o médico, em entrevista à BBC News Brasil por chamada de vídeo.





"Hoje, nos ambientes hospitalares em que também há ensino, temos comitês de ética em que nada é feito sem que haja um aval. Nenhum médico, treinando ou formando em medicina pode usar o paciente a seu bel-prazer, como se fosse um treinamento ou uma verdadeira cobaia."

Também há leis e uma Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde que regulamentam a residência na odontologia, biomedicina, farmácia, entre outros.

Mas enquanto as residências são pós-graduações que costumam durar mais de um ano, os treinamentos que costumam usar pacientes modelos vão desde atendimentos individuais em consultório a cursos livres de final de semana e especializações mais longas.

A BBC News Brasil procurou o Ministério da Saúde perguntando se há alguma regra para o uso de pacientes modelos em cursos de curta e longa duração, mas não obteve resposta mesmo após insistência. Entretanto, vários entrevistados confirmaram que não há regras..





Dênis Calazans exemplifica complicações que podem ocorrer com o uso de preenchedores no rosto, muito comuns na área estética, e que exigiriam atendimento médico: "Não só inflamações, mas também necroses, amaurose, lesões vasculares, nervosas. Tudo isso precisa de uma assistência médica especializada".

"Suponhamos que um desses pacientes (modelos) se submeta a um desses cursos de finais de semana, em que lá várias mãos vão estar treinando no seu próprio corpo ou face. Imagine se uma dessas situações evolui para uma gravidade, por exemplo a oclusão de uma artéria que nutre o olho, algo que pode levar até à cegueira quase que imediata. Será que esses ambientes estão preparados para socorrer situações emergenciais como essa? Será que esses profissionais monetizando com esses cursos estão preparados verdadeiramente para tratar complicações?", questiona.

"Essa se torna uma verdadeira arapuca, e lamentavelmente nós assistimos mais uma vez a população desassistida em termos de segurança. Há uma necessidade premente de que as autoridades competentes regulamentem esse tipo de procedimento para que não possamos assistir mais situações tão desastrosas como essas que viram manchetes da imprensa."





Calazans também alerta para a "periculosidade das mídias sociais", já que "o número de seguidores ou likes nunca foi atestado de competência profissional".

"Muitos pacientes acabam se encantando por tudo aquilo que se vê nas mídias sociais, e hoje elas se tornaram verdadeiras armadilhas", afirma o médico. "É muito importante que os pacientes se alertem sobre isso e não sejam iludidos, buscando tratamento pensando sempre na sua segurança e não no baixo custo."

'O que se sobrepõe ao paciente?'


Em 2020, Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicou resolução explicitando intervenções no rosto vedadas aos seus profissionais, como a rinoplastia (foto: Getty Images)

Para o advogado David Castro Stacciarini, o surgimento de vagas para pacientes modelos é uma consequência de transformações que o mercado estético passou na última década. Nisso, as redes sociais também têm papel importante, influenciando até na mudança dos tipos de procedimentos realizados, de acordo com o advogado.

"O Brasil antigamente não tinha uma característica de fazer procedimentos na face. O Brasil sempre endeusou mais os procedimentos no corpo", aponta. "Com a vinda das redes sociais, o rosto se tornou extremamente importante".





No país que há muito tempo aparece no pódio daqueles que mais fazem procedimentos estéticos no mundo, a maior procura por intervenções no rosto deu ainda mais combustível a um mercado bilionário. A pesquisa global da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (em inglês, International Society of Aesthetic Plastic Surgery, a Isaps) referente a 2019 mostrou o Brasil no segundo lugar em procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos realizados (2.565.675) no planeta, atrás apenas dos Estados Unidos (3.982.749).

De 2018 para 2019, enquanto o número de intervenções cirúrgicas no Brasil diminuiu um pouco, em 0,3%, o de procedimentos não cirúrgicos subiu 39,3% — e os mais realizados nesta categoria no Brasil foram a aplicação da toxina botulínica e do ácido hialurônico.

Com alterações na legislação e nas normas dos conselhos profissionais, cada vez mais profissionais se aproximaram da área estética.

Stacciarini explica que um ponto de partida para esta tendência foi a sanção, em 2013, da Lei do Ato Médico, que tipificou como procedimentos invasivos "a invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos" — e estes foram definidos como competência exclusiva dos médicos. Uma consequência disso, segundo o advogado, foi que profissionais não médicos viram nesta definição um caminho aberto para realizar procedimentos considerados a partir de então não invasivos.





A lei também resguardou a possibilidade de outros profissionais não médicos aplicarem injeções, e a então presidente Dilma Rousseff justificou em sua sanção na época que isto era importante para garantir o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), que depende de equipes multiprofissionais. Uma consequência talvez não prevista, segundo segundo Stacciarini, é que isto favoreceu o trabalho de profissionais de saúde não médicos com produtos estéticos injetáveis, como é a toxina botulínica.

Porém, as portas abertas pela lei não seriam suficientes sem flexibilizações que vieram dos conselhos profissionais — com quem associações e conselhos médicos passaram a batalhar na Justiça, em disputas que correm até hoje.

Ainda em 2013, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) publicou uma resolução reconhecendo "a saúde estética como área de atuação do farmacêutico". Em 2014, foi a vez do Conselho Federal de Biomedicina (CFBM) "regulamentar prescrição e utilização de substâncias (incluindo injetáveis), pelo profissional biomédico habilitado em biomedicina estética para fins estéticos". Em 2016, o Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicou resolução autorizando "a utilização da toxina botulínica e dos preenchedores faciais pelo cirurgião-dentista, para fins terapêuticos funcionais e/ou estéticos, desde que não extrapole sua área anatômica de atuação".





O Conselho Federal de Medicina (CFM) acionou a Justiça contra todas essas resoluções e outras relativas à estética — com derrotas, vitórias, suspensões e retomadas para todos os lados. Estas disputas chegaram até ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Em paralelo a este limbo jurídico, o mercado continuou a toda. Na prática, as fronteiras entre o que são procedimentos invasivos ou não invasivos, de competência do médico ou não, ficaram porosas.

De acordo com Stacciarini, em 2020 o próprio CFO precisou dar um basta a uma explosão de dentistas fazendo cirurgias que são de competência exclusiva do médico. Em uma resolução, o conselho explicitou intervenções no rosto vedadas aos seus profissionais: alectomia, blefaroplastia, cirurgia de castanhares, lifting de sobrancelhas, otoplastia, rinoplastia e ritidoplastia ou face lifting.

A resolução destacou ainda que cirurgiões-dentistas estão proibidos de fazer intervenções "em áreas anatômicas diversas de cabeça e pescoço" e afirmou que qualquer profissional ou instituição oferecendo cursos de procedimentos vedados está sujeito a penalidades.





Mesmo assim, Stacciarini diz que as irregularidades não pararam — às vezes, só trocaram de nome.

"Aquilo que se chamava rinoplastia, agora é nose job level 5 ou ultranose. Otoplastia é earshut — sempre nomes em inglês, para ficar legal", explica, mencionando também a frequência da reivindicação de técnicas "patenteadas", o que não é possível para procedimentos terapêuticos e cirúrgicos no corpo humano, segundo a lei brasileira de propriedade intelectual.

O advogado afirma que, uma vez investigados, esses procedimentos poderiam ser constatados como irregulares e seriam alvo de punição. Entretanto, na prática, eles continuam acontecendo e tomando novos nomes como disfarces.

Em nota, o CFO afirmou que os Conselhos Regionais de Odontologia "detêm de competência legal para iniciar o processo ético por eventual infração", e que o conselho federal, como "órgão de supervisão de classe", "promove campanhas educativas, divulga orientações, entre outras iniciativas para que os profissionais de odontologia não cometam esse tipo de erro".

David Castro Stacciarini destaca uma particularidade das vagas para pacientes modelos.

"Perceba que tudo isso envolve praticamente a área estética. Você não vê, por exemplo, cursos com pacientes modelos para ortopedia; para cirurgia geral; para neurocirurgia. Então, temos um aumento substancial de procedimentos estéticos que gerou um certo mercado paralelo disso. É um mercado bilionário, muito dinheiro está envolvido."





Paciente modelo em 2019, Ana também fala deste tipo de vaga com o "reflexo" de um nicho promissor: o de cursos em que um profissional ensina uma técnica para outros profissionais, que pagam para isso.

"Não é do paciente (modelo) que eles ganham dinheiro; acho que ganham dinheiro vendendo cursos para outros dentistas. Por exemplo, a doutora que me atendeu, ela já quase não atua mais na área (da odontologia): ela só dá cursos. E aí tem o desdobramento: quem fez o curso dela começa a dar cursos em sua região também. Vira um novo nicho, um novo mercado."

""Eu não desmereço a profissão dos dentistas: acho que são excelentes, muitos são capacitados, todas as áreas merecem se desenvolver. Mas o que se sobrepõe ao paciente?", questiona Ana, que relatou falta de assistência ao ter uma inflamação no nariz após ser paciente modelo.

"Acho que dinheiro não deve nunca se sobrepor ao paciente. Se você é paciente modelo, ou paciente dele, deve ser tratado com o mesmo respeito, com a mesma ética do que todas. Fazer disso um mercado para ganhar dinheiro em detrimento da saúde de outras pessoas não é certo pra nenhuma área."





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