No final da adolescência, o americano Mike (nome fictício) se tornou um neonazista. Agora, apenas seis anos depois, ele se assusta ao pensar o quão perto ele esteve, no auge de sua raiva, de matar pessoas que enxergava como inimigos.
Essa trajetória teve um ponto importante em maio de 2020, quando a morte de George Floyd, um homem negro, ao ser contido por um policial branco (agora condenado à prisão), fez eclodir em todos os Estados Unidos protestos do movimento Black Lives Matter (em tradução livre, Vidas Negras Importam).
Mike protestava na cidade de Oakland, na Califórnia, ao lado de sua namorada. Mas, quando a polícia começou a disparar balas de borracha e gás lacrimogêneo contra a multidão, eles decidiram ir embora. No caminho de volta até o carro, viram uma van branca parar. E daí escutaram tiros.
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Por coincidência, Mike tinha uma conexão com Underwood: havia protestado ao lado de membros da família dele naquele dia.
Também tinha uma conexão com o homem que, posteriormente, seria acusado de seu assassinato: Steve Carillo, que era sargento na mesma base aérea em que Mike havia se alistado alguns anos antes.
E não é só isso. Mike tinha um segredo. Em casa, em seu armário, havia um uniforme feito de tecido verde acinzentado, com um símbolo nazista na gola.
Mike guardava o uniforme como um lembrete a respeito da pessoa que ele havia sido - alguém que queria sair às ruas e matar.
Assim como Carillo, suspeito de simpatizar com extremistas que creem em uma teoria conspiratória de uma guerra civil americana iminente, Mike havia se embrenhado no mundo do extremismo e se tornado um seguidor da violenta extrema direita do país.
No verão anterior a seu último ano no ensino médio, Mike assistiu à primeira onda de protestos do Black Lives Matter, mas participar deles sequer passava pela sua cabeça. "Eu achava que eles eram a reencarnação de Satã", lembra.
Ele havia acabado de conhecer um novo amigo por meio de um grupo de mensagens online. Paul (nome fictício) havia convidado Mike para visitá-lo na casa onde morava com os pais, em um tranquilo subúrbio americano. O encontro era para "gravar alguns vídeos de propaganda".
Paul abriu a porta totalmente vestido com um uniforme nazista. Levou Mike a sua garagem. "Era como uma loja de roupas para nazistas", lembra. As paredes estavam repletas de armas e munições.
Paul havia reunido mais alguns jovens para a gravação. Eles colocaram as armas e munições em um caminhão e dirigiram até uma colina próxima.
"Estávamos em um parque nacional atirando, gravando e correndo em roupas nazistas", conta Mike. Até que os guardas do parque apareceram. Paul se irritou.
"Ele não queria ouvir aquela autoridade governamental dizendo a ele que não podia fazer o que ele achava que podia, que era fazer vídeos fingindo ser parte do Wehrmacht (forças da Alemanha nazista)."
Os guardas confiscaram as armas que viram, mas algumas haviam ficado escondidas. O grupo voltou para a casa de Paul e ficou por ali conversando com os pais dele, todos ainda vestindo os uniformes nazistas.
Mike tinha 17 anos na época e havia se tornado um mensageiro perfeito do extremismo tóxico.
Ele havia passado a infância em uma cidade pequena, rural, de maioria branca. Passava os dias remando o caiaque no lago, ou andando de bicicleta com os amigos. Jantares e churrascos comunitários eram comuns em um lugar onde todos se conheciam.
Mas o padrasto de Mike era um alcóolatra que tinha rompantes violentos. Quando o menino tinha 12 anos, a mãe se divorciou do marido e mudou-se com os filhos para outra parte do país.
De repente, Mike passou a viver em um bairro urbano, multicultural, que ele odiou. "As pessoas não se pareciam nada com o que eu tinha visto até então, a comida era diferente, a água tinha outro gosto, era tudo totalmente diferente."
A família já não era mais tão próspera, e o padrasto - de quem Mike era próximo, a despeito da violência - nunca cumpriu a promessa de visitá-los.
Tudo isso enfureceu Mike, que encontrou uma válvula de escape na extrema direita.
Encorajado pelo pai de um amigo, ele começou a escutar os programas do apresentador direitista Sean Hannity.
Quando procurou conteúdo semelhante na web, encontrou vídeos e podcasts da alt-right no Facebook e no YouTube.
Os algoritmos das redes sociais já estavam criando o que se chama de efeito "toca do coelho" - direcionando-o a conteúdo que se tornava cada vez mais extremista
Ali escutou, por exemplo, que o divórcio era uma conspiração judaica para destruir o ideal da família branca.
"Por qualquer motivo que fosse, para mim era mais fácil acreditar nisso do que (no fato de) meu padrasto ser um alcóolatra degenerado", explica.
Mike acabou migrando para a parte mais sombria da internet - fóruns de mensagens no 4chan e 8chan, que Mike descreve como "clubes sociais para racistas, nazistas e supremacistas brancos, onde as pessoas podiam usar a 'palavra n' (em referência ao termo depreciativo usado contra a população negra) enquanto conheciam uns aos outros".
Ali ele começou a trocar mensagens com um grupo de neonazistas da baía de San Francisco, na Califórnia, e foi parar na porta da casa de Paul.
"Eu só estava buscando um destino para minha raiva", explica. "E achei o lugar perfeito."
Um ano mais tarde, Mike terminou o ensino médio. Sem conseguir ser aprovado nas universidades de sua escolha, resolveu entrar para a Marinha, ideia rejeitada por sua mãe. Eles entraram em acordo quanto a um plano totalmente diferente: de Mike se mudar para Londres e estudar Administração.
No Reino Unido, Mike imaginava encontrar um cenário vitoriano, de homens de fraque e cartola. A realidade era outra. Ele estudava em Whitechapel, área londrina com uma vibrante comunidade islâmica.
"Eu era um jovem de 18 anos, um nacionalista branco repleto de medo, profundamente islamofóbico", lembra. "Não vi a diversidade como algo positivo, vi como um exemplo de tudo o que estava errado no mundo."
Durante sua estadia londrina, Mike se afundou ainda mais no nacionalismo branco. A maior parte de sua atividade era online - ele tinha o hábito de seguir e assediar celebridades esquerdistas americanas junto a outros extremistas -, até que desistiu de frequentar as aulas de Administração. Após alguns meses, recebeu a notícia de que seu visto de estudante seria revogado.
Em uma tarde de abril de 2017, ele estava no metrô, a caminho de encontrar amigos em um pub perto do Parlamento britânico. No vagão, os passageiros ouviram que a estação de Westminster, onde Mike desceria, estava fechada por causa de uma operação policial. Todos teriam de descer na estação anterior.
O que havia acontecido, naquela era, era um atentado extremista na ponte de Westminster, quando um veículo avançou contra pedestres. O motorista então saiu do carro e esfaqueou um policial. Seis pessoas morreram, incluindo o autor do ataque, e 50 pessoas ficaram feridas.
Mike encontrou uma cena de pânico quando saiu do metrô. A cena de duas crianças envoltas em cobertores de alumínio oferecidos pelos serviços de emergência ficariam para sempre na sua mente.
Àquela altura, o grupo autodenominado Estado Islâmico era uma força poderosa no Oriente Médio e reivindicou autoria do ataque - um entre muitos ocorridos na Europa.
No dia seguinte, Mike tentou se alistar às Forças Armadas, sob a influência de nacionalistas brancos que conhecera online. Foi rejeitado pela Força Aérea Britânica por causa de sua nacionalidade, mas em questão de semanas estava de volta à Califórnia, tentando uma vaga na Força Aérea americana.
"Eu estava supereletrizado. Na minha cabeça, não havia dúvida de que queria ir para outro país, fosse Iraque ou Afeganistão, vestir um uniforme, pegar uma arma e matá-los."
Nas semanas antes de começar seu treinamento militar, ele passou horas na garagem de casa, bebendo e fumando, cheio de ira.
"Eu quase sempre carregava uma arma comigo", lembra. "Estava em um ponto que, se alguém me dissesse para fazer algo, eu teria feito."
Mike hoje se assombra ao pensar que, naquele momento, poderia ter virado alguém como Steve Carillo.
Mais tarde, ao ler sobre o menino de 17 anos que viajou à cidade de Kenosha (Wisconsin), durante protestos, e matou a tiros três pessoas com uma AR-15 semi-automática, Mike se sentiu mal.
"Eu olho praquele adolescente e penso: uau, estive perto de ser assim".
Em fevereiro deste ano, o Departamento de Defesa americano emitiu uma ordem para que líderes militares do país lidassem com o extremismo em suas tropas.
O então secretário Lloyd Austin criou uma força-tarefa para determinar como identificar "ameaças internas", explicando que recrutas em potencial seriam investigados em busca de eventuais afiliações extremistas.
Isso aconteceu depois de análises preliminares sobre a invasão do Capitólio (sede do Congresso americano), em 6 de janeiro, ter indicado que muitos invasores eram militares na ativa ou na reserva,
Uma pesquisa online feita em 2020 pelo site Military Times com 1,1 mil militares na ativa identificou que um terço deles havia visto sinais de comportamento racista ou supremacista dentro das tropas.
Talvez surpreendentemente, porém, para Mike o serviço militar acabaria sendo o ponto de partida para sua jornada de saída do extremismo de direita.
No final de 2017, ele estava em seu segundo mês de treinamento, nas florestas do Estado do Missouri.
"Eu estava no meio do nada com todos os tipos de pessoas de todas as partes dos Estados Unidos - negros, judeus, um cara de Guam que me ensinou a caçar peixes", ele recorda. "Fiz amizades com pessoas que nunca teria considerado amigas até então."
O treinamento era difícil, exaustivo, e Mike tinha dificuldade em lidar com a falta de autonomia - seus superiores hierárquicos controlavam todos os seus movimentos.
"Uma coisa é ser um garoto fumando, lendo 4chan e ficando irritado na garagem", reflete. "Outra é se ver no meio do nada, em uma base aérea da qual você não pode sair, com pessoas gritando com você."
Infeliz, ele pensou várias vezes em abandonar o treinamento nas oito primeiras semanas. Sua mãe não falava mais com ele - talvez, sabendo que ele havia entrado às Forças Armadas por motivos errados.
Receber cartas era um alívio para os recrutas, mas Mike não recebeu nenhuma nas cinco primeiras semanas.
Um dia, outro recruta, um homem negro, notou a tristeza de Mike e o convidou a rezar.
Foi um dos muitos pequenos gestos que ajudaram Mike a sobreviver ao treinamento - e que, por fim, mudaram sua forma de ver a vida.
"Por que ele está me ajudando?", pensou Mike a respeito do colega. "Pensei que quisesse me destruir."
Ao longo das semanas seguintes, o mesmo recruta e outro jovem judeu ampararam Mike durante um de seus dias mais difíceis, com um amigável tapa nas costas, dizendo "cara, você vai conseguir passar por isto".
O treinamento também tirou-o da "bolha" que reforçava suas crenças racistas. Sem tempo de frequentar os fóruns online e longe da propaganda tóxica que antes preenchia os seus dias, ele sentiu que o ódio estava diminuindo.
Ao fim do treinamento básico, Mike já sabia que não queria fazer parte das Forças Armadas. Chegou a passar meses trabalhando na base aérea, mas profundamente deprimido.
Chegou a seu ponto mais infeliz enquanto se preparava para ser mandado ao Afeganistão.
"Eu sabia que seria enviado para lá. Estava muito estressado, bebi muito uma noite e tive acesso a uma arma."
Ele chegou perto de cometer suicídio e acabou recebendo uma licença médica não remunerada. É um período sobre o qual ele tem dificuldade em falar.
Embora, em seu caso, o treinamento o tenha afastado do extremismo, Mike não acha uma coincidência que tantos envolvidos em violência de extrema direita tenham um passado militar.
Ele acredita que muitos extremistas, tal como ele, entram nas Forças Armadas em busca de uma oportunidade de matar pessoas de raças diferentes.
Outros, ele opina, se alistam porque acham que o treinamento os vai ajudar a derrubar o Estado. Um terceiro grupo, por sua vez, se desilude e se radicaliza como resultado da experiência de treinamento, conclui.
"Eles se sentem explorados, sentem que não são compreendidos e sentem que (os superiores) mentiram para eles", argumenta Mike.
Uma dessas pessoas é um amigo que Mike viu nas redes sociais demonstrando apoio por uma milícia antigoverno. "Ele serviu (as Forças Armadas) por ao menos 16 anos e esteve em duas guerras - duas guerras relacionadas a mentiras", diz Mike, se referindo aos conflitos no Iraque e Afeganistão.
Mike também deixou de ver sentido nas guerras americanas, mas ao mesmo tempo admitiu que seu racismo também era sem sentido.
"Eu meio que fui percebendo, uns 70 anos depois de todo mundo, que Hitler estava claramente errado", conta.
Nesse processo de mudança, Mike decidiu entrar em contato com Christian Picciolini, um ex-neonazista que hoje se esforça para "desconverter" extremistas.
"Ele me disse para praticar a empatia, não julgar os outros, ser honesto e sempre ser auto-refletivo - essencialmente para encontrar formas de fazer o bem", conta Mike, que começou a trabalhar em uma casa de shows e se envolveu com a cena punk rock.
Foi a válvula de escape de que ele precisava para a raiva que sentia desde sua infância difícil. O punk se tornou sua salvação.
"Minha comunidade punk rock foi uma das coisas mais importantes para me tirar (do extremismo). Vejo como é vital ter um escape e um grupo ao qual você sinta que pertence. Mas um grupo construtivo."
Finalizada sua licença médica, Mike decidiu não voltar à base militar. Foi liberado em dezembro passado.
Às vezes, ele teme que o extremismo ainda tenha poder sobre ele. Quando a mercearia onde trabalhava foi roubada por dois homens negros, deixando uma senhora ferida, Mike tentou impedi-los com uma arma. E reconheceu em si o mesmo ideário racista e desumanizante de antes - mas, desta vez, lutou contra eles.
"Fiz esforços contínuos para ser antirracista, ativamente. Mas não vou fingir que não é difícil."
Enquanto ele tenta escapar da armadilha extremista, outros americanos mergulham mais fundo nela. Mike se disse horrorizado com os ataques de janeiro ao Capitólio.
Os Estados Unidos são uma "união de clãs que poderiam estar em guerra", ele diz, "e quando você solta uma faísca, as coisas ficam incrivelmente perigosas. Eu já vi muita violência."
Mike quer que as pessoas entendam o quão fácil é, nos Estados Unidos atuais, que uma ideologia extremista domine a vida de alguém.
"Eu era um adolescente com acesso à internet em um subúrbio da Califórnia e fiquei radicalizado o bastante para querer cometer atos de violência contra outras pessoas por causa da cor da sua pele ou da sua religião", ele conta.
"O que quero que as pessoas saibam é que eu era um nazista. Não na Baviera de 1939, mas na América dos dias de hoje."
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