Catorze horas de avião separam Brasília de Moscou — são mais de 11 mil quilômetros. E um sem-número de diferenças históricas, culturais, étnicas, sociais, geográficas e climáticas, é claro. Mas, olhando bem, há também muito em comum entre brasileiros e russos.
"O Brasil exerce uma espécie de fascínio sobre os russos, e a Rússia, sobre os brasileiros", diz a jornalista Vivian Oswald, em seu livro Com Vista para o Kremlin. "A grande distância entre estes países continentais — quase intangível para aqueles que nunca a percorrerão — se encarrega de apimentar os imaginários coletivos com uma dose de exotismo e muitas pitadas de estereótipos em relação ao outro."
"Além da dimensão continental e as temperaturas extremas, o Brasil para mais, a Rússia para menos, há pouca coisa ", comenta o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, que já escreveu livros sobre as duas nações. "Eles têm um respeito e conhecimento pelo seu passado e pela sua cultura que o brasileiro médio não chega aos pés. Eles são simpáticos, mas mais fechados."
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A seguir, algumas curiosidades sobre esses dois países.
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Essas enormidades fazem de ambos os territórios espaço para diversidades climáticas e culturais. E isso se reflete até nos fusos horários: o Brasil tem quatro, a Rússia tem 11.
Em termos populacionais, o Brasil está na frente. Tem a sexta maior população do mundo, com 216 milhões de habitantes. Os russos são 145 milhões — figuram na nona colocação.
Por outro lado, parece que atraímos mais os russos do que o contrário. Dados mais recentes do Ministério das Relações Exteriores registram apenas 1,1 mil brasileiros vivendo na Rússia. Segundo a Embaixada da Federação Russa no Brasil, há 35 mil russos vivendo no Brasil. No livro Imigrantes Russos no Brasil, o pesquisador Igor Chnee afirma que vivem em solo brasileiro 1,8 milhão de descendentes de imigrantes russos atualmente.
Novelas e futebol
Russos e brasileiros compartilham alguns gostos em comum. As novelas, por exemplo. Produções nacionais são exibidas por lá desde a época soviética — com A Escrava Isaura. E seguem sendo um hit.
"Fonte inesgotável de informações sobre cenários e comportamentos tipicamente brasileiros, as nossas novelas continuam fazendo sucesso na Rússia", diz Oswald, em seu livro. "Acho que boa parte da simpatia que nutrem por nós vem das imagens que guarda das novelas. Descobri, inclusive, que as novelas brasileiras estão entre os itens mais pirateados da internet russa, segundo dados de uma empresa de segurança que acompanha movimentos suspeitos de cópias e reproduções piratas na rede."
"É comum vê-los sonhando com as praias cariocas", acrescenta ela.
O futebol é outra paixão em comum. E aí russos não pestanejam em exaltar nomes como Pelé, Ronaldinho, Kaká, Neymar… E Vágner Love, atacante que está longe de ter se tornado uma unanimidade no Brasil, mas que fez história no clube CSKA Moscou, onde jogou de 2004 a 2012 e, depois, novamente em 2013.
Coincidentemente, Brasil e Rússia foram os países-sede das últimas duas Copas do Mundo, respectivamente em 2014 e 2018.
Religião
Mais de 100 milhões de russos se declaram cristãos da Igreja Ortodoxa — embora se estime que o número de fiéis ativos esteja entre 20 e 30 milhões. No Brasil, são quase 119 milhões de católicos — e 170 milhões que se dizem cristãos.
Além da religiosidade em si, a história das duas principais denominações religiões também diz muito sobre a formação social de ambos os países. Isto porque as igrejas Católica Apostólica Romana e Ortodoxa Russa têm uma raiz comum — e guardam semelhanças e uma relação de respeito mútuo.
O racha histórico entre esses dois mundos ocorreu em 1054, no episódio chamado de Cisma do Oriente. Conforme explica o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma, uma diferença importante é que a Igreja Ortodoxa "não tem a autoridade central, como os católicos têm o papa".
"São igrejas autocéfalas, com patriarcas, que são líderes locais. No caso russo, há a figura do patriarca de Moscou, atualmente Cirilo 1º. Para os ortodoxos, papa Francisco seria o "patriarca de Roma".
A relação é amigável. Em 2016, Francisco e Cirilo se encontraram, em um gesto histórico. "Ao mesmo tempo, é uma relação de cuidado, diplomática. Porque a Igreja Russa é muito influenciada pelo governo russo", diz Domingues.
Nesse sentido, pode haver algum paralelo com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que costuma adotar pautas moralistas, se aproximando do eleitorado cristão conservador.
" Putin usa a Igreja Ortodoxa como um meio de controle. É quase a religião oficial. Os bispos agem como parte do governo russo", analisa Domingues.
Uma nostalgia reacionária
Na política, o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversas biografias sobre personalidades do antigo império brasileiro e do recém-lançado Os Últimos Czares - Uma Breve História Não Contada dos Romanov, observa que "as simpatias monarquias em ambos os países nunca morreram".
"Acabaram se metamorfoseando com o tempo", pontua ele. "A extrema-direita, em ambos os países, é anticomunista e tradicionalista, autoritária e nacionalista. O que une muitos dentro desse espectro político é o tradicionalismo, representado pela monarquia, tanto que diversos políticos brasileiros não tiveram o menor escrúpulo em surfar na onda o movimento, sem saber o mínimo sobre nossa história e seus personagens e ainda tentando emplacar fake news a respeito deles."
"Aqui no Brasil, a bandeira do Império brasileiro retornou em alguns gabinetes políticos e até chegou a ser hasteada em algumas cidades", lembra Rezzutti. "Na Rússia, houve ameaças de bombas em cinemas e uma crítica feroz ao filme Mathilde, de 2017, sobre uma bailarina que foi amante do czar Nicolau 2º."
Nesse sentido, a religiosidade também permeia os discursos. Se entre parcela dos monarquistas brasileiros há um movimento que pede a canonização da princesa Isabel, os Romanov já gozam dessa prerrogativa dos altares.
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"Nicolau, Alexandra e os cinco filhos foram canonizados em 1981 como neomártires pela Igreja Ortodoxa Russa no exterior. Para esse ramo, por ter sido chefe espiritual da Igreja Ortodoxa, Nicolau fora sacrificado por causa de sua fé, e isso era prova de sua santidade", contextualiza o pesquisador.
"A Igreja Ortodoxa Russa, depois de muito debate, também canonizou posteriormente Nicolau, Alexandra e os filhos, mas como portadores da paixão, ou seja, pessoas que encararam a morte com resignação. A evidência disso seria o sinal da cruz feito por Alexandra e Olga antes de morrerem", completa.
Vícios
Bebe-se muito em ambos os países, é verdade. Nos dois casos, acima da média global — em torno de 6,2 litros por pessoa ao ano. Mas entre cachaças e vodcas, os russos são muito mais exagerados do que os brasileiros: 15,2 litros anuais per capita, contra 8,7.
"O risco de morte violenta entre os homens , em geral causada pelo abuso de álcool ou drogas, é de três a quatro vezes superior ao de outros países da Europa e das Américas", pontua Oswald, em seu livro sobre a Rússia. "O álcool, o tabaco e, mais recentemente, as drogas estão entre os principais responsáveis pela morte precoce dos locais, sobretudo dos homens."
Segundo a autora, o álcool é visto como um dos maiores vilões da nação. "Chama a atenção do estrangeiro a relação dos russos com a bebida. Homens e mulheres podem ser vistos a qualquer carregando garrafas graúdas de cerveja pela rua", frisa ela.
"Uma das imagens clássicas do inverno é a de garrafas de vodca enterradas parcialmente na neve", conta. "Alguns dos seus donos acabam na mesma situação. Reza a lenda que se a nevasca for muito intensa e o gelo durar por muito tempo, só são encontrados depois de passado o inverno."
E se no Brasil cigarro é algo visto como fora de moda, e principalmente os jovens não demonstram interesse pelo tabagismo, na Rússia o cenário é preocupante. De acordo com dados do livro Com Vista para o Kremlin, 75% dos homens fumam e 70% dos estudantes na faixa entre os 13 e 18 anos também alimentam o vício. Além disso, o tabagismo faz parte do cotidiano de metade das grávidas.
No prato
De um lado, delícias como a feijoada. De outro, pratos famosos como estrogonofe.
Que, vale ressaltar, ganhou também suas versões brasileiras e caiu no gosto popular. A jornalista Vivian Oswald conta, em seu livro, que os russos "surpreendem-se ao descobrir que o brasileiro come seu aportuguesado estrogonofe sempre, desde criança".
Mas as diferenças estão nos ingredientes. Na Rússia, não vai tomate. E o creme de leite é uma versão um pouco diferente, chamada de smetana, comum aliás aos países de cultura eslava. "O prato costuma ser servido com batatas cozidas ou purê de batatas", detalha a jornalista. "Arroz, muito de vez em quando. E não é lenda: as russas, de fato, têm a receita na ponta da língua."
O mais importante, contudo, é a carne. Ao contrário das invenções brasileiras — com versões de frango e até camarão —, para um russo não é admissível estrogonofe que não seja feito de carne de boi.
Na alta gastronomia os russos também têm seus expoentes. No mesmo estilo do brasileiro Alex Atala — ou seja, com a ideia de fazer um mergulho nas tradições culinárias e reinventá-las com pose contemporânea e preços exorbitantes — o White Rabbit faz sucesso em Moscou. Em comum, ambos são há anos figurinhas fáceis nos rankings dos melhores restaurantes do mundo e estrelam episódios da cultuada série Chef's Table, da plataforma Netflix.
A nostalgia pelo passado
São dois lados opostos, mas muito provavelmente da mesma moeda: a nostalgia russa e a saudade brasileira tem bem aquele espírito que jocosamente costuma ser chamado de "viúvo da ditadura".
Assim como no Brasil muitos celebram com "bons tempos" aquele período de regime militar opressor, muito provavelmente pela memória embaçada pelo passar do tempo, pela censura que não permitia saber das corrupções e das violência impostas pelas instituições, na Rússia não são poucos os que lamentam pelo passado glorioso — no caso, o período socialista soviético.
" está na maneira como idealizam o passado da potência que querem ressuscitar com o capitalismo e velhos sonhos prometidos pela propaganda soviética que alguns juram ter sido realizados", comenta Oswald, em seu livro.
"Fala-se com saudade dos tempos em que a vida era mais dura, mas em que os aposentados não precisavam arranjar bicos ou pedir esmolas para viver os anos que lhes restavam depois de uma vida inteira de trabalho", exemplifica ela.
Como brincam os memes, são as "saudades do que não vivi". Quem nunca?
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