Jornal Estado de Minas

CRISE

Qual o papel da Otan no confronto entre Rússia e Ucrânia?


A invasão russa à Ucrânia tem como um de seus principais panos de fundo os temores da Rússia com o avanço da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no leste da Europa.

Desde o fim da União Soviética (URSS), em 1991, a aliança militar encabeçada por Estados Unidos e Europa incorporou 13 países da região aos seus membros, entre eles as ex-repúblicas soviéticas Estônia, Lituânia e Letônia.





A Ucrânia é atualmente um "país-associado" à Otan, o que significa que pode se unir à organização no futuro.

 

Para o governo russo, a inclusão de seus vizinhos na aliança é uma tentativa dos americanos e das potências europeias de cercar seu território, o que configuraria uma ameaça à Rússia. "Para os EUA e seus aliados, é a chamada política de detenção da Rússia, com óbvios dividendos políticos. E para nosso país, é uma questão de vida ou morte, é uma questão do nosso futuro histórico como povo. Não é exagero. É uma ameaça real não só aos nossos interesses, mas à própria existência do nosso Estado e sua soberania", disse Putin ao anunciar a invasão da Ucrânia em 24/02.

E para tentar conter o que classifica como ameaça, Putin vem exigindo ao longo dos últimos anos que a Otan cesse suas atividades militares no leste da Europa e forneça garantias de que a Ucrânia não será aceita na organização.





Mas afinal, qual a responsabilidade da Otan na atual invasão da Ucrânia pela Rússia? A expansão da aliança militar pelos países do antigo bloco comunista ajudou a manter a paz (como diz oficialmente) ou está justamente na raiz da guerra que vemos hoje?

Putin costuma repetir que a Otan é "apenas um instrumento da política externa dos EUA", país com o maior poderio militar do mundo. Por outro lado, a organização ressalta que todas as suas decisões são negociadas e tomadas por consenso entre os seus 30 membros.

A BBC News Brasil consultou especialistas de diversas vertentes em busca de contexto e análises variadas num debate que contrapõe visões de mundo bastante opostas.

Quais os objetivos da Otan?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a Otan foi criada em 1949 por 12 países, entre eles EUA, Canadá, Reino Unido e França, justamente com o objetivo de conter o avanço da então União Soviética.

Os membros da aliança têm o compromisso de se defender mutuamente em caso de ataque armado contra qualquer um deles.

A Segunda Guerra Mundial acabara quatro anos antes, e os soviéticos que haviam ajudado a derrotar a Alemanha nazista emergiam, principalmente por questões ideológicas, como o maior adversário da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.





Ou seja, a aliança militar nasceu de uma rivalidade com a Rússia, o principal país-membro da URSS, numa oposição entre dois campos: o capitalista e o comunista.

Em 1955, a Alemanha, antiga inimiga na guerra, entrou para a organização. No mesmo ano, os soviéticos criaram sua própria aliança militar, o Pacto de Varsóvia, com outros países do Leste Europeu de orientação comunista.

A organização do bloco comunista se manteve de pé até 1991, quando a URSS entrou em colapso após o fim da Guerra Fria e uma Rússia enfraquecida emergiu como herdeira política.

Naquele momento, chegou-se a discutir uma nova arquitetura de segurança mundial que incluísse a Rússia. A Otan chegou, inclusive, a assinar acordos de cooperação com a Rússia durante as décadas de 1990 e 2000, mas a parceria foi aos poucos se deteriorando por conta de divergências entre os membros. Os russos também tentaram entrar para a Otan, sem sucesso.

"Depois da Guerra Fria, houve conversas e negociações para parcerias, mas a Otan é uma aliança construída com base na confiança e nos valores comuns — e a Rússia nunca teve um momento realmente democrático na sua história moderna", diz o analista americano Bruce Jones, diretor do Projeto sobre Ordem Internacional e Estratégia do think tank Brookings Institution.





(foto: BBC)

"Havia desafios sistêmicos e psicológicos intransponíveis para a adesão da Rússia à Otan, entre eles a falta de confiança das forças militares dos membros da aliança em relação à Moscou, que herdou muito de seu arsenal e procedimentos operacionais da URSS", diz Mikhail Troitskiy, professor da Universidade Mgimo e especialista em relações internacionais de Moscou.

O fim da URSS, por sua vez, deu início a um processo de conquista de independência dos países do Leste Europeu e, ao longo dos anos, quase todos os membros do antigo Pacto de Varsóvia entraram para a Otan.

Para Putin, a Otan serve como instrumento da política externa americana e exemplo da forte influência que o país exerce sobre seus aliados. "Todos os seus países-satélites não só concordam com eles sempre que podem como também copiam o comportamento deles e aceitam com admiração as regras impostas."

Os EUA e a Alemanha são os países que mais contribuem financeiramente com a organização (16% do orçamento total cada), mas a Otan ressalta que todas as decisões da aliança são tomadas em conjunto e por consenso de todos os seus 30 membros. "Decisões por consenso significam que não há votação na Otan. Consultas são feitas até que se chegue a uma decisão aceitável para todos. Algumas vezes alguns países-membros discordam em alguns pontos. Em geral, o processo de negociação é rápido porque seus membros estão em contato regularmente e sabem as posições dos outros de forma antecipada", afirma a Otan.





Por outro lado, vale lembrar que os EUA são o país mais rico e com o maior poderio militar do mundo. Segundo levantamento do Brookings Institution, os americanos gastam mais anualmente com segurança e defesa do que China, Rússia, Arábia Saudita, França, Reino Unido, Alemanha, Índia e Japão juntos.

Otan avança sobre o Leste Europeu?

Para Moscou, a presença da Otan no leste europeu é uma das principais ameaças ao país. Putin afirma que os Estados Unidos e a Europa Ocidental utilizam a aliança para cercar a Rússia e quer que a organização cesse suas atividades militares no Leste Europeu.

"A Rússia quer algum tipo de comprometimento por parte da Otan de que a aliança não está interessada em recrutar a Geórgia, e mais especialmente a Ucrânia, como seus membros", diz Troitskiy.

"De forma mais geral, o governo russo também quer que a Otan imponha algum tipo de limite à sua política de portas abertas", afirma o especialista russo, em referência ao Artigo 10º do tratado, que permite a adesão de qualquer país europeu que possa melhorar e contribuir "para a segurança da região do Atlântico Norte".





O presidente russo teme ainda que, no caso de uma aliança com a Ucrânia, a nação vizinha sirva de base para o eventual lançamento de mísseis contra a Rússia.

Para Alexandre Uehara, coordenador acadêmico do Centro Brasileiro de Estudos de Negócios Internacionais da ESPM, as negociações para a entrada da Ucrânia na Otan soaram como uma provocação para os russos. "Nesse aspecto, faltou uma maior habilidade para conduzir o processo de forma a evitar qualquer tensão", diz. "Mas, por outro lado, a Otan é aberta a qualquer nação."

Em discursos pouco antes da invasão ao país vizinho, Putin também acusou os EUA e os demais membros da Otan de desprezarem totalmente os interesses russos e ignorarem seus pedidos por provas de que não incorporariam a Ucrânia aos seus membros ou expandiriam ainda mais sua presença militar na região.

"Já está claro: as preocupações fundamentais da Rússia foram ignoradas", disse Putin em entrevista a jornalistas no início de fevereiro.

Para o líder russo, a Otan é


Governo russo acredita que a inclusão de seus vizinhos na aliança é uma tentativa dos americanos e das potências europeias de cercar seu território (foto: ALEXEY NIKOLSKY/GETTY IMAGES)

A Otan, por sua vez, rechaça essas afirmações e diz que só um número reduzido de seus Estados-membros compartilha fronteiras com a Rússia, além de sustentar que trata-se de uma aliança defensiva, e não ofensiva.





A organização afirma ainda que todos os países do Leste Europeu incorporados como membros solicitaram sua entrada de forma independente, sem qualquer tipo de pressão por parte dos EUA ou da Europa.

"Estamos preparados para ouvir as preocupações da Rússia e travar uma conversa real sobre como defender e reforçar os princípios fundamentais da segurança europeia com que todos nós nos comprometemos, a começar pelos Acordos de Helsinki", disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, em janeiro, referindo-se aos pactos assinados após a Guerra Fria para estabelecer uma "coexistência pacífica" entre os blocos comunista e capitalista.

"Isso inclui o direito de cada nação de escolher seus próprios arranjos de segurança", defendeu.

Para Bruce Jones, entre as razões que levaram os países do Leste Europeu a se juntarem à organização esteve justamente o temor de uma invasão russa. "A Otan não recrutou as ex-repúblicas soviéticas. Muito pelo contrário, esses países se inscreveram para ser parte da aliança de maneira efusiva porque não confiam na Rússia", diz.

Qual foi a atuação da Otan na Rússia e na Ucrânia?

Quando os ucranianos depuseram o seu presidente pró-Rússia no início de 2014, quando ele se recusou a se aproximar da União Europeia apesar do apoio popular majoritário, a Rússia anexou a península da Crimeia, ao sul da Ucrânia. Também respaldou separatistas pró-Rússia que ocuparam grandes territórios ao leste da Ucrânia.





A Otan não interveio, mas respondeu colocando tropas em vários países do Leste Europeu pela primeira vez.

A aliança possui quatro grupos de batalha multinacionais do tamanho de um batalhão na Estônia, Letônia, Lituânia e Polônia; e uma brigada multinacional na Romênia.

A Otan também ampliou sua vigilância aérea nos países bálticos e no leste da Europa para interceptar qualquer avião russo que ultrapasse a fronteira de seus Estados-membros.

A Rússia exige que esse poderio bélico seja retirado daquela região.

Após a invasão à Ucrânia, os países-membros da Otan concordaram em enviar ajuda militar a Kiev em forma de milhares de armas antitanque e centenas de mísseis de defesa, bem como munição.

Os países da União Europeia também aprovaram envio de suprimentos de armas no valor de 450 milhões de euros (R$ 2,5 bilhões) e equipamentos de proteção no valor de 50 milhões de euros (R$ 288 milhões), além de um apoio ao Exército ucraniano com caças e combustível.





Mas a Otan tem repetido que não haverá participação de soldados da organização no conflito.

A Otan pode ser responsabilizada pela invasão à Ucrânia?

Segundo a narrativa defendida pelo Kremlin e seus apoiadores, a invasão à Ucrânia seria uma reação às ações tomadas pela própria Otan contra os interesses russos.

Putin afirma que a aliança traiu a Rússia ao quebrar uma promessa feita à União Soviética ao fim da Guerra Fria.

Segundo o presidente russo, o secretário de Estado do presidente americano George H. W. Bush, James Baker, teria se comprometido verbalmente a não expandir a influência da Otan pelo Leste Europeu durante discussões em fevereiro de 1990 com o então líder soviético Mikhail Gorbachev. Em troca, a URSS teria que aceitar a unificação da Alemanha.

A promessa, porém, nunca se tornou um acordo formal. Anos depois, em 2014, Gorbachev negou em uma entrevista que houve um comprometimento formal dos EUA para evitar o avanço da Otan.


Ataque à maior torre de TV da capital ucraniana deixou cinco mortos na terça-feira (foto: BBC)

"O tema da 'expansão da Otan' não foi discutido e não foi abordado naqueles anos", disse ele ao jornal Russia Beyond. "Uma questão que levantamos e que foi discutida foi garantir que as estruturas militares da Otan não avançassem e que forças armadas adicionais não fossem implantadas no território da então República Democrática Alemã após a reunificação. A declaração de Baker foi feita nesse contexto."





No entanto, Gorbachev disse acreditar que, apesar de a expansão da Otan não trair promessas concretas, ela desrespeita o espírito do que estava sendo acordado naquele momento. "Foi um grande erro desde o início. Foi definitivamente uma violação do espírito das declarações e garantias feitas a nós em 1990", disse.

E as críticas em relação ao avanço da Otan não são novidade nem tampouco exclusividade de vozes russas. George Kennan, um dos diplomatas americanos mais influentes no período de oposição à URSS, classificou a expansão da Otan na Europa Central como "o erro mais fatídico da política americana em toda a era pós-Guerra Fria".

Em um artigo publicado no jornal The New York Times em 1997, ele afirmou que a ampliação rumo ao leste inflamaria tendências nacionalistas e militaristas entre os russos e poderia afetar o próprio desenvolvimento da democracia na Rússia. Não seria, portanto, a maneira mais inteligente de lidar com um império humilhado após sua dissolução e detentor do maior arsenal nuclear do mundo.





Para Mikhail Troitskiy, da Universidade Mgimo, a resistência dos membros da aliança em relação aos interesses russos levou a uma insatisfação cada vez maior no Kremlin. "A relutância da Otan em considerar as demandas de Moscou sobre a adesão da Ucrânia e o fim da política de expansão da aliança irritaram a Rússia", diz. "No entanto, essas eram contradições de fundo que de forma alguma tornaram inevitável o confronto militar entre a Rússia e a Ucrânia."

Por outro lado, Bruce Jones, do Brookings Institution, avalia que as ações militares do governo de Vladimir Putin contra a Ucrânia têm mais raízes internas do que externas. "A invasão tem mais a ver com o sentimento profundo de conexão e o desejo que os russo nutrem de ter a Ucrânia de volta ao seu invólucro do que com qualquer ação da Otan."

Mas segundo o analista americano, isso não quer dizer que o temor de Moscou em relação à aliança militar ocidental seja irracional.

"Historicamente, alianças multilaterais já mudaram de opinião sobre suas políticas. Por isso, a Rússia pode sim ter razões para se preocupar com uma mudança de posição da Otan", diz. "Mas isso não explica o porquê de uma ação militar".





O professor Alexandre Uehara compartilha da opinião de que a incursão russa é injustificável.

"Analisando retrospectivamente, existem alguns aspectos legítimos para que a Rússia questione essa expansão para o Leste Europeu", afirma. "Mas isso ainda não justifica a invasão da Ucrânia, pois toda a questão poderia ter sido resolvida diplomaticamente".

A Otan possui apenas objetivos defensivos?

A Otan se define como uma aliança militar criada para a defesa de seus membros e, segundo seus membros, só age militarmente quando atacada.

Esse princípio de defesa coletiva está registrado no artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, que garante que os recursos de todos os países da organização possam ser usados para proteger os demais.

Essa definição defensiva, porém, é vista com desconfiança por muitos na Rússia.

Membros do governo e o próprio presidente Putin citam com frequência o bombardeio realizado pela Otan contra a antiga Iugoslávia em 1999 como prova de que a aliança não se restringe à defesa.





Durante seu encontro com o chanceler alemão Olaf Scholz em meados de fevereiro, o líder russo levantou a questão mais uma vez.

"O chanceler federal acabou de dizer que as pessoas de sua geração — e eu certamente pertenço a essa geração — acham difícil imaginar uma guerra na Europa", disse na entrevista coletiva após o encontro com o alemão. "Mas todos nós fomos testemunhas da guerra na Europa que a Otan desencadeou contra a Iugoslávia."


Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, em foto de 26 de fevereiro (foto: EPA/PRESIDENCIA DE UCRANIA)

"Aconteceu. Sem nenhuma sanção do Conselho de Segurança da ONU. É um exemplo muito triste, mas é um fato difícil", disse Putin, referindo-se à operação militar contra Belgrado e Novi Sad, que levou à retirada das forças iugoslavas do Kosovo e o estabelecimento de uma missão da ONU no país.

De acordo com a posição da Otan à época, a operação foi um sucesso e cumpriu seus objetivos ao colocar fim ao conflito que assolava a região há quase uma década.

Para os russos, porém, é mais uma prova de que a aliança poderia usar sua presença no Leste Europeu para atacar seu território.





Segundo Troitskiy, a Otan tem um histórico complexo quando o tema é sua natureza pacífica. "A adesão dos países da Europa Central e Oriental na Otan após o fim da Guerra Fria certamente ajudou pacificar e reduzir as ambições perigosas desses Estados", diz. "Mas, por outro lado, a Rússia sempre citará o bombardeio contra a Iugoslávia como evidência de uma intervenção."

"E claro, alguns membros da Otan invadiram o Iraque, uma operação que pode facilmente ser usada para testemunhar a natureza expansionista da aliança", diz o analista de Moscou. "Houve ainda a intervenção na Líbia em 2011, quando a Otan claramente ultrapassou seu mandato, e há também quem aponte para as ações no Afeganistão como outra operação expansionista".

Jones, do Brookings Institution, não vê qualquer intenção expansionista nas ações da Otan na Iugoslávia. "Os EUA não começaram essa guerra. Eles apenas escolheram interferir em defesa de Kosovo após múltiplas rodadas de negociação e esforços, o que é completamente diferente de arquitetar uma invasão contra uma nação independente."





A Ucrânia ainda pode entrar para a Otan?

A Ucrânia não é membro da Otan, e embora pleiteie entrada no grupo, não há qualquer previsão de que isso ocorra num futuro próximo.

Mas a aliança já negou em diversos momentos o fim de sua política de portas abertas ou um veto a qualquer membro que queira aderir à organização, como é exigido pela Rússia.

"A relação da Otan com a Ucrânia será decidida pelos 30 aliados da Otan e a Ucrânia, e por ninguém mais", disse o secretário-geral da organização em dezembro de 2021.

Para Bruce Jones, não há como saber se a aliança pode trabalhar para aceitar Kiev no futuro, mas essa realidade é improvável atualmente, diante da operação russa.

"O processo de entrada da Ucrânia na Otan ocorreu de forma bastante lenta em parte porque o governo em Kiev deu entrada ao pedido pouco antes da crise financeira que atingiu a Europa", afirma.

"Mas a invasão russa mudou tudo e, talvez, ao final da guerra, a Ucrânia tenha se mostrado uma resistência tão corajosa e séria que tudo mais caminhe rápido", diz.





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