Uma potência nuclear invade um país menor, sem que a ação militar tenha o apoio do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), com intenção de destituir o governo local com base em alegações sobre este governo que são consideradas falsas por especialistas.
Essa poderia ser uma descrição da guerra na Ucrânia. Iniciada em 24 de fevereiro pela Rússia, condenada em diversas instâncias na ONU e justificada, entre outras alegações, pela necessidade (também considerada falsa) de "desnazificar" o governo do país vizinho, segundo o líder russo, Vladimir Putin.
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Recorrente desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, a comparação entre as duas invasões ilumina pontos importantes da geopolítica internacional nas últimas décadas e ajuda a explicar, em parte, como tanques russos foram parar nas cercanias da capital ucraniana Kiev em março de 2022.
"A invasão do Iraque em 2003 foi ilegal, um erro e se provou muito prejudicial aos interesses da política externa dos EUA nos 20 anos subsequentes. E é possível questionar, até certo ponto, se o que fizemos no Iraque em 2003 não pode ter encorajado ou entrado no cálculo de Putin sobre sua capacidade de se safar quando ele decide invadir a Ucrânia", afirmou à BBC News Brasil Allen S.
Weiner, diretor do Centro de Negociação e Conflito Internacional da Universidade Stanford (EUA) e ex-conselheiro do Departamento de Estado dos EUA.
A percepção de que a guerra do Iraque serviu como precedente e modelo pra Putin é disseminada entre analistas de política internacional e conflitos ouvidos pela BBC News Brasil.
Em seu anúncio da invasão ucraniana, o próprio Putin citou a guerra do Iraque como um caso "especial" entre uma série de eventos "que nossos colegas ocidentais não gostam de lembrar" de uso ilegal da força pelo "Ocidente", em uma rememoração que incluiu também a Líbia e a Sérvia, entre outros países atacados por Europa e EUA sem a anuência de órgãos como o Conselho de Segurança da ONU.
"Tanto no Iraque quanto na Ucrânia, temos uma guerra de agressão e uma vontade de mudança de regime. E, em boa parte, o que deixou Putin tão à vontade para fazer essa guerra contra a Ucrânia foram os precedentes no Oriente Médio, foi saber que ele tem um longo histórico de casos para dar como exemplo para dizer: 'não venham apontar o dedo contra mim antes de pensar no que vocês mesmos fazem'", disse a historiadora da Universidade de São Paulo (USP) Arlene Clemesha, especialista em estudos árabes, à BBC News Brasil.
Embora identifique paralelos nas duas ações e interesse nos comparativos históricos, Weiner ressalta que nenhum precedente pode servir como atenuante no julgamento das ações dos envolvidos no atual conflito. "A Rússia precisa ser avaliada por suas ações à luz das leis, da moral e da ética. O fato de que outros países também tenham feito coisas ruins e erradas não altera o julgamento sobre a Rússia e sua ação na Ucrânia", diz Weiner, que atuou como advogado no Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, no âmbito da ONU.
O contexto e os líderes dos países envolvidos
Tanto na guerra do Iraque quanto na da Ucrânia, as crises se avolumaram por anos até desaguar em invasões militares.
No caso da Ucrânia, as hostilidades entre o país e a Rússia se iniciaram em 2014, quando manifestações populares levaram à queda do então presidente ucraniano Víktor Yanukóvytch, um aliado do Kremlin. A revolta popular, conhecida como Euromaidan, estourou ainda em 2013, depois que Yanukóvytch cedeu aos interesses de Putin e se recusou a assinar um acordo de aproximação com a União Europeia, como queria a maior parte dos ucranianos.
Moscou reagiu à destituição do aliado anexando a até então ucraniana Crimeia e passou a apoiar as atividades militares de separatistas russos nas províncias de Luhasnk e Donetsk. Há oito anos, a região é palco de um conflito que já matou 5,7 mil soldados separatistas russos e 4,6 mil militares ucranianos. Sem respaldo internacional, Putin qualifica a situação como "genocídio".
De lá pra cá, a Ucrânia fez três eleições democráticas, elegendo três líderes diferentes - todos distantes da Rússia, que não mais conseguiu estabelecer aliados no poder em Kiev.
Volodymyr Zelensky, o atual presidente, chegou ao poder em 2019, em uma curta carreira política catapultada pelo papel de presidente que ele interpretou como ator e comediante na TV. Zelesnky, de família judia, vinha tentando estreitar os laços com a União Europeia e a Otan, movimento que desagradava a Putin, a quem uma possível entrada da Ucrânia na aliança militar representaria uma ameaça à soberania russa.
O Iraque, por sua vez, era governado há quase três décadas por Saddam Hussein quando os EUA invadiram o país. Enquanto limitava os controles da população e dos demais poderes sobre seu governo, gradualmente convertido em autocracia, Saddam tentava expandir os limites de sua influência - e do território iraquiano - para além das fronteiras nacionais.
Nesse contexto, nos anos 1980, Saddam empreendeu uma guerra com o Irã, que também pretendia combater grupos populacionais iraquianos a quem o governante via como uma ameaça. Em 1988, tropas de Saddam lançaram bombas de gás venenoso sobre a cidade de maioria curda Halabja, na região da fronteira com o Irã. O episódio, que matou ao menos 5 mil pessoas, foi considerado o maior ataque de armas químicas do período moderno - ele escandalizou a comunidade internacional e seria central para explicar o que aconteceria com o país 15 anos mais tarde.
"O Conselho de Segurança da ONU adotou dezenas de resoluções entre 1990 e 2003 condenando o Iraque. Não só Saddam virou um pária, mas o Iraque passou a ser visto pela comunidade internacional como um país que violava suas obrigações e representava uma ameaça à paz e à segurança internacionais", afirma Weiner.
Depois da guerra com o Irã, Saddam ainda tentou anexar o vizinho Kuwait, momento em que as tropas americanas e da OTAN enfrentaram diretamente pela primeira vez os militares iraquianos - e os derrotaram.
O líder do Iraque descumpriu reiterados compromissos de inspeção contra armas químicas determinadas pela ONU entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000.
Mas a perspectiva de que os americanos agissem militarmente no país só passou a ser real depois dos ataques de 11 de setembro, quando a então administração de George W. Bush incluiu o país no chamado Eixo do Mal, como um Estado abrigo do que chamaram de "terroristas", produtor de armas químicas e um risco ao mundo.
O problema é que as evidências disso eram frágeis. Saddam não tinha relação com os ataques de 11 de Setembro e os americanos não expunham provas dos supostos estoques iraquianos de armas químicas - que jamais foram encontrados depois da devassa dos EUA no país. E assim, nem a ONU e nem a Otan aceitaram apoiar a empreitada.
"É fácil entender por que as pessoas pensam que os EUA não têm moral para criticar ou punir a Rússia com base no que fizemos no Iraque. Cometemos erros tremendos na Guerra do Iraque. A própria decisão de ir à guerra em 2003 foi um erro, já que não era uma guerra necessária na época, apesar do sofrimento do povo iraquiano sob o governo de Saddam Hussein", afirmou à BBC News Brasil Javed Ali, cientista político da Universidade de Michigan (EUA) e ex-analista do FBI com atuação no Conselho de Segurança Nacional dos EUA. "E além de tudo, revelou-se que as justificativas para a ação eram falhas ou não sólidas o suficiente. Há algumas lições realmente dolorosas que os EUA aprenderam com a Guerra do Iraque, e parece que Putin está cometendo exatamente os mesmos erros de cálculo."
A diferença entre a reação internacional ao Iraque e à Ucrânia
A iniciativa americana rachou a Otan e enfraqueceu publicamente a ONU, cuja decisão foi desrespeitada. Em setembro de 2004, o então secretário-geral da organização, Koffi Annan, afirmou que a invasão americana havia sido "ilegal".
Curiosamente, um dos líderes da resistência na ONU à ofensiva americana no Iraque foi o presidente russo, Vladimir Putin. "Naquele momento, Putin atuou pra defender a legislação internacional na qual ele pisou em cima em 2022", disse à BBC News Brasil Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ao lembrar que Putin não só não submeteu a invasão da Ucrânia ao colegiado da ONU como ordenou a invasão no mesmo momento em que uma reunião emergencial do Conselho de Segurança discutia a crise.
"A comunidade internacional certamente não concordou que o remédio para o problema iraquiano fosse a invasão dos EUA. Alguns países apoiaram isso, como Austrália, Reino Unido. Muitos outros países se opuseram. Mas agora quase não há quem apoie Putin", relembra Weiner.
No total, 49 países expressaram apoio à guerra do Iraque e à retirada forçada de Saddam Hussein do poder. Além dos EUA, Reino Unido, Dinamarca, Austrália e Polônia mandaram tropas para os campos de batalha. E países como o Japão, a Itália e a Espanha ofereceram suporte político, diplomático ou logístico.
No caso da Ucrânia, até agora, a Rússia conta com o apoio público apenas de Belarus, Eritreia, Coreia do Norte e Síria. A China tem mantido posição de ambiguidade, se abstendo de condenações públicas. Os EUA afirmam que Pequim estaria avaliando fornecer ajuda econômica e armamentícia a Putin, o que os chineses negam.
Para Richard Caplan, professor de relações internacionais da Universidade de Oxford (Reino Unido), foi mais fácil para certos países aceitar a invasão no Iraque do que na Ucrânia, mesmo com justificativas frágeis para a ação militar, diante do perfil de governo e liderança de Saddam Hussein.
"Os EUA interpretaram as resoluções anteriores do Conselho de Segurança da ONU como se elas lhes dessem a autoridade para usar a força contra o Iraque, o que era extremamente discutível, mas uma tentativa de encaixar a ação na estrutura legal internacional", disse Caplan à BBC News Brasil. "Mesmo assim, várias democracias, como França e Alemanha, se opuseram."
Para Clemesha, da USP, a reação internacional é um dos pontos de diferença entre as duas guerras. Ela afirma que a ameaça de um conflito nuclear, que não esteve presente em nenhuma das guerras no Oriente Médio, é uma das explicações para a comoção e a condenação da Rússia. Mas não a única.
"Estamos falando de um conflito que acontece no que é considerado pelo poder como o centro do mundo, a Europa. E o resto do mundo é visto como periferia, como segunda categoria. É algo que a gente vê desde o século 19 em relação ao Oriente Médio. Parece que as cenas simplesmente não comovem. As pessoas veem uma família síria bombardeada e isso parece não causar o mesmo impacto que ver os meninos ucranianos loirinhos fugindo de seu país. As vítimas da guerra na Ucrânia ganharam muito mais voz do que as do Iraque", diz a pesquisadora.
Tomada de território por meio da guerra?
Para o historiador israelense Yuval Harari, uma guerra entre Rússia e Ucrânia representaria uma quebra com a trajetória histórica do mundo após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), justamente por representar uma tentativa de um Estado soberano de alterar as fronteiras de outro Estado soberano por meio da guerra.
De 1945 para cá, ele argumenta em um artigo publicado pela revista britânica The Economist, os males do açúcar mataram muito mais seres humanos do que a pólvora porque a humanidade escolheu resolver suas disputas territoriais de formas não bélicas. O avanço das tropas de Putin pelas fronteiras ucranianas seriam um passo para trás.
Embora Putin não tenha admitido abertamente que, como fez com a Crimeia, pretenda anexar as regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, as quais ele reconheceu como independentes pouco antes da invasão, o líder russo tem questionado a própria existência de um Estado ucraniano. E argumenta que russos nessas duas áreas têm sido maltratados e perseguidos pelo governo ucraniano.
"No Iraque, a ideia de ocupar e anexar o país nunca esteve nos planos dos EUA ou de seus aliados", afirma Caplan, que segue: "O que estamos vendo agora com a invasão da Ucrânia pela Rússia e suas alegações de que a Ucrânia é um país inexistente, fictício, é sem precedentes nos últimos tempos. É algo comparável com o que vimos no início do século 20, quando Hitler invadiu a então Tchecoslováquia em apoio aos povos de língua alemã de Sudetenland." O pesquisador da Universidade Oxford se refere à ofensiva de 1938, quando a Alemanha nazista anexou parte do território alheio citando maus tratos dos tchecos à minoria alemã, às vésperas da Segunda Guerra.
Para Weiner, da Universidade Stanford, em que pesem os constantes desrespeitos à lei internacional, a ideia de um país anexar por meio de guerra parte de um território alheio é um desafio aos princípios fundadores do direito internacional do pós-guerra e a noção de respeito às fronteiras é basilar para o relacionamento geopolítico global.
"Putin parece uma liderança do século 19, já que naquele período os Estados adquiriam territórios pela força. Há mais de 75 anos isso foi colocado fora dos limites de ação dos Estados. E é por isso que esse movimento da Rússia é muito desestabilizador para todo o mundo", diz Weiner.
Um passado e um futuro sombrios
Em 2015, em entrevista ao cineasta americano Oliver Stone, Putin afirmou que o grande erro dos americanos na guerra com o Iraque estava na premissa de que seria possível forçar um povo a mudar seu regime político a partir de fora, algo que ele mesmo defende ser possível na Ucrânia agora.
"O mais deprimente é a tentativa de mudar os regimes naquela parte do mundo com a esperança de que no dia seguinte tudo se resolva e essa democracia ao estilo americano surja. Mas isso é impossível e estamos testemunhando o que está acontecendo naquela região agora. De onde veio o Estado Islâmico? Nunca houve terroristas lá antes", disse Putin na ocasião.
Tanto Clemesha quanto Ali concordam com o diagnóstico do líder russo de que o surgimento do Estado Islâmico resultou da enorme instabilidade regional que a invasão do Iraque gerou no Oriente Médio.
E afirmam que nunca houve sucesso na construção americana de instituições no país. Cidades iraquianas inteiras foram arrasadas, e a população sofreu não só pela violência da guerra, mas pela falta de infraestrutura, acesso à saúde e alimentos.
A organização britânica Iraq Body Counts estimou que 112 mil civis morreram em decorrência direta do conflito, mas estudos acadêmicos apontam que mais de 500 mil iraquianos perderam suas vidas em decorrência direta ou indireta da guerra.
"Cada guerra é única, em vários aspectos, mas nesses dois casos o que vemos são duas superpotências nucleares impondo a civis sem condição de se defender os seus desejos", disse à BBC News Brasil Edmund Pries, historiador da Wilfred Laurier University (Canadá), e ele mesmo filho de um casal de refugiados ucranianos.
Com pouco mais de 20 dias de conflito na Ucrânia, os prospectos são sombrios. Milhares de civis ucranianos já morreram e mais de 3 milhões estão refugiados em outros países. Estimativas do Pentágono apontam que em duas semanas de guerra, cerca de 4.000 militares ucranianos e 6.000 militares russos perderam as vidas (a Rússia só forneceu dados sobre mortes entre seus combatentes na primeira semana de conflito, quando anunciou ter perdido 498 militares). Se as estimativas americanas estiverem corretas, as baixas russas já superam todas as 4,4 mil mortes de soldados americanos em oito anos de guerra no Iraque.
"O Oriente Médio é hoje um lugar melhor por causa da guerra do Iraque?
Especialistas e historiadores afirmam que a região está em seu pior momento na História. É ainda muito cedo para começar a traçar essas longas perspectivas históricas com a Ucrânia, mas acho que a lição que os EUA aprenderam no Iraque é que você não sabe como as populações vão reagir à sua chegada. Essa é a realidade que Putin enfrenta agora. Putin está disposto a manter as tropas russas na Ucrânia por uma década? Mesmo que Kiev caia e eles instalem algum tipo de regime fantoche, ligado a Moscou, os ucranianos vão continuar lutando contra os russos da mesma forma que os insurgentes iraquianos continuaram lutando contra os EUA após a queda de Saddam. E então, em que ponto a Rússia ou Putin dirão 'basta'?", questiona Ali.
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