Eram tempos da Guerra Fria, da Cortina de Ferro e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou simplesmente União Soviética – que se esfacelou em 1991, mudando a geopolítica no mundo e sepultando o regime iniciado com a Revolução de Outubro de 1917. Seis anos antes do colapso do Estado, do qual faziam parte Rússia, Ucrânia e mais 13 nações, o casal de jornalistas Cyro Siqueira e Anna Marina, do Estado de Minas, visitou Moscou, a hoje bombardeada Kiev, capital ucraniana, e outras regiões da vastidão entre Europa e Ásia.
Hoje, diante das imagens de Kiev atacada por mísseis, comboios militares e ataques aéreos, Anna Marina, colunista e editora do caderno Feminino do EM, se mostra perplexa. “Aonde será que Putin (presidente da Rússia) quer chegar?”, pergunta, ao se lembrar de cenas que marcaram a memória e trazem um passado de mais humanidade. Numa das imagens que a retina gravou, em abril de 1985, está uma turma de estudantes ucranianas, na praça de frente a uma escola, coletando todo tipo de lixo. “Não posso me esquecer. Depois da aula, a turma fazendo a limpeza.”
Eis um relato de Anna Marina sobre Kiev, conhecida como “Cidade Heroica”, cortada pelo Rio Dnieper e devastada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com perda de mais de 200 mil vidas. Era abril de 1985, quando ela destacou: “Hoje, totalmente reconstruída, a cidade é linda, cheia de parques (onde, neste início de primavera, os cidadãos trabalham voluntariamente para preparar tudo para a chegada das flores; é impressionante ver desde crianças até velhos de enxada e ancinho na mão, mulheres, às vezes até com bolsa pendurada no braço, trabalhando os jardins públicos), e do Monte Vladmir pode-se ter uma bela vista da cidade velha até o Rio Dnieper”.
Anna Marina falou, na série publicada pelo EM, sobre os equipamentos culturais – o que causa comoção neste março de 2022, devido às ameaças e à destruição de monumentos. “Para visitar, existe a Catedral de Santa Sofia, construída no século 11, reconstruída várias vezes e com um interior esplêndido na sua combinação de afrescos, mosaicos e arte. Ainda para se ver, a Igreja da Trindade, com um iconostásio todo trabalhado em talha dourada a ouro, o Museu de Arquitetura e História de Santa Sofia.”
Ainda sobre a cultura local, a jornalista destacou o Museu Ucraniano de Arte Folclórica e Decorativa, com acervo formado por peças de prata encontradas em escavações, até a moderna arte pós-revolução, a exemplo “de trajes típicos, cerâmica (muito semelhantes às do Vale do Jequitinhonha e do México), lindos tapetes (com a trama do kilim), louça, cristais”. Também no roteiro, o museu dedicado à arte europeia e oriental, “com bons quadros de Bellini”.
Caviar nas ruas e “gente séria”
Caviar nas ruas e “gente séria”
Anna Marina e Cyro Siqueira (que faleceu há 8 anos) integraram um grupo de jornalistas e agentes de viagem. “Na capital russa, fiquei impressionada com o controle absoluto dos agentes da alfândega, algo que nunca tinha visto. Vasculhavam tudo, contavam e anotavam até o número de pedras dos brincos, anéis, colares e outras joias que mulheres e homens usavam.”
Sem dar a mínima para caviar – “Não gosto mesmo!”, ressalta – , Anna Marina nem se preocupou em comprar a iguaria em Moscou. “Até mesmo o Beluga (considerado o melhor do mundo) estava à venda nos camelôs, com um preço três vezes inferior ao das lojas.” Na volta, uma decepção gastronômica para grande parte dos viajantes, que se abasteceu nos vendedores das calçadas. “Como ninguém tinha recibo, os agentes da alfândega apreenderam tudo.”
Uma boa lembrança está no serviço dos hotéis. “As toalhas eram de um linho grosso, muito boas e bonitas. Até procurei nas lojas, pois queria trazer para o Brasil, mas não encontrei.” E tem uma passagem bem curiosa: “Os russos tinham fascínio pela calça jeans. A camareira até me perguntou se eu tinha alguma para vender”.
Como as temperaturas já estavam mais baixas, com todo mundo encapotado, a jornalista nem pôde reparar muito no semblante das pessoas nas ruas. Mas numa das matérias da série (“A Rússia, esse país distante”), definiu bem no título: “E o povo? É triste? Resposta: é sério”.
Visto a jato
A viagem à antiga URSS, na verdade, começou alguns dias antes do embarque – para conseguir o visto de entrada. “Cyro me falou, dois dias antes, sobre a viagem; portanto, eu teria que ir a Brasília com urgência. Peguei o avião e passei o dia inteiro na embaixada, dizendo que só sairia de lá com o visto na mão. Felizmente, deu tudo certo, mas foi uma correria danada”, conta Anna Marina.
Se para a jornalista foi a primeira viagem à URSS, não foi para o marido. Cyro Siqueira esteve lá bem antes, em agosto de 1956, incluindo uma viagem no trem transiberiano, de Moscou (Rússia) a Pequim (China). Naquela época, considerou “nove dias e nove noite numa ‘maria-fumaça’”.
Também publicando uma série de matérias no EM, Cyro Siqueira escreveu sobre as cidades, o comportamento do povo, futebol – um dia antes da chegada, o time da Portuguesa, do Rio de Janeiro, tinha jogado contra o Dínamo, de Moscou – a bebida paixão nacional, a vodca, e enfocou a moda, observando que a aparência das russas (malvestidas e masculinizadas) começava a preocupar seriamente o Estado soviético.
Passadas décadas, a união das repúblicas simbolizada pela foice e o martelo se esfarelou, a curiosidade de revelar os costumes por trás da cortina de ferro se transformou em repúdio global praticamente generalizado à Rússia pós-invasão da Ucrânia e os relatos do casal de jornalistas se transformaram em fotografias no álbum da história. Imagens que ajudam a contar a trajetória de um império que parece ainda sonhar em reconquistar parte de seus domínios e de uma nação que segue pagando o preço de sua independência.