O direito ao aborto é um dos temas mais polêmicos dos tempos atuais — provocando embates por vezes violentos entre ativistas dos dois lados. Tanto nos Estados Unidos como em outros países, como o Brasil, o aborto é central nas chamadas guerras culturais, a briga sobre valores, crenças e costumes que coloca religiosos e feministas em campos opostos.
O tema voltou à tona este mês com o recente vazamento de um rascunho de parecer de um juiz da Suprema Corte americana — que indicava que os EUA podem derrubar a famosa decisão Roe contra Wade, de 1973, que vem garantindo em âmbito federal o direito constitucional ao aborto desde então.
O que muitos não sabem é que o aborto — hoje central na pauta das guerras culturais americanas — por muitos anos foi um assunto completamente ignorado por evangélicos.
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Isso só mudou nos anos 1970, depois do lançamento de um documentário feito por um carismático líder evangélico americano, cuja pregação introduziu o tema na pauta política americana.
Essa história está contada no podcast Things Fell Apart, da BBC, que entrevistou Frank Shaeffer, filho do líder evangélico Francis Schaeffer.
Frank foi responsável por produzir um segmento contra o aborto em um dos documentários de seu pai. Esse segmento inspirou diversos evangélicos nos EUA a organizarem campanhas contra o direito de mulheres de interromperem a gravidez. O documentário também foi citado como inspiração por um ativista antiaborto que assassinou um médico que realizava o procedimento nos EUA nos anos 1990.
Hoje arrependido de sua contribuição no debate sobre o aborto e crítico de seu já falecido pai e do movimento evangélico nos EUA, Frank Schaeffer contou ao jornalista Jon Roston, da BBC, a história desse documentário que ajudou a mudar o rumo das guerras culturais nos EUA e no mundo.
De Bob Dylan à palavra de Deus
Frank Schaeffer cresceu nos Alpes Suíços, na comunidade evangélica de L'Abri, fundada nos anos 1950 por seu pai, o pastor e teólogo Francis Schaeffer.
"Eu era um menino disléxico vagando pelos Alpes, crescendo em uma estranha comunidade evangélica americana fundamentalista", lembra Frank Schaeffer, em depoimento ao podcast da BBC.
" era um sujeito completamente excêntrico e maravilhoso. Pode parecer contraditório, mas nas manhãs de domingo ele fazia pregações sobre o que ele chamava de a palavra infalível de Deus e no sábado anterior ele podia estar dando uma palestra sobre as letras de Bob Dylan."
Nos anos 1970, L'Abri era frequentado por muitos ocidentais que peregrinavam em direção ao Oriente ou a Israel. A esses viajantes, Schaeffer — um líder diferente de todos os evangélicos da sua geração — dava palestras sobre como os cristãos deveriam se relacionar com arte moderna ou com o festival de Woodstock.
Schaeffer atraía públicos ecléticos. Até mesmo o músico Eric Clapton frequentou L'Abri. Entre os visitantes da comunidade estava Billy Zeoli, produtor de filmes evangélicos que poucos anos depois trabalhou na Casa Branca como líder espiritual do presidente Gerald Ford.
"As pessoas falavam para meu pai que ele deveria pegar as palestras que dava sobre as relações entre arte, cultura e cristianismo e colocar em filme. Ele deveria fazer um documentário. Billy Zeoli juntou US$ 3,5 milhões para financiar o projeto, o que naquela época era dinheiro demais para um documentário", lembra Frank Schaeffer.
Sucesso estrondoso
Francis acreditava no potencial de seu filho Frank como diretor de cinema. Fascinado por cineastas como Federico Fellini, Frank se empolgou com a ideia. Ele conta que não tinha muita vontade de fazer um documentário sobre temas religiosos — mas que viu no filme a chance de começar sua carreira no mundo do cinema.
A combinação desses três elementos — as ideias religiosas de Francis Schaeffer, a visão cinematográfica de Frank e o dinheiro de Zeoli — resultou na série de documentário em dez episódios How Should We Then Live (Como Devemos ViverEntão, em tradução livre), de 1976. O documentário tinha um grande orçamento, com segmentos em países diferentes, como Itália e França.
A mensagem do filme era que, sem Deus, a humanidade estaria perdida moralmente.
Um dos segmentos do documentário falava sobre o aborto, condenando a prática. A inclusão do tema foi ideia de Frank — até então evangélicos não costumavam discutir o assunto.
"A maioria dos cristãos evangélicos viam isso como um assunto 'de católicos'. E naqueles dias nós não queríamos ter nenhuma relação com católicos, se fosse possível. Aliás, a nossa teologia dizia que os católicos iriam para o inferno", lembra Frank.
"Foi por sugestão minha a meu pai que os últimos dois episódios da série foram sobre Roe versus Wade e a legalização do aborto. Minha sugestão veio do contexto de eu ser um pai adolescente. Era um assunto muito pessoal para mim, não tinha nada a ver com um argumento filosófico."
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A série de documentários foi um sucesso estrondoso nos EUA. O lançamento foi feito com uma tour em 16 cidades americanas, em arenas com públicos de cerca de 20 mil pessoas. Em Nova York, o lançamento foi no famoso Madison Square Garden.
"Nosso tempo em uma comunidade pequena no interior da Suíça tinha chegado ao fim. Agora meu pai era um grande líder evangélico nos EUA."
Apesar da enorme influência de Francis Schaeffer entre evangélicos, ele continuava sendo ignorado pela grande mídia. Frank Schaeffer afirma que os livros de seu pai estavam vendendo cinco vezes mais do que os best-sellers da época — mas como as publicações eram vendidas em igrejas evangélicas, e não em livrarias, o livro não aparecia na lista dos mais lidos nos jornais.
Mil bonecas no Mar Morto
Algo no sucesso do documentário incomodava Frank: o público evangélico não gostou dos episódios sobre aborto. Os espectadores religiosos não se sensibilizavam com esse tema.
Frank Schaeffer convenceu seu pai então a fazer uma nova série de documentários — desta vez apenas sobre aborto — chamado Whatever Happened to the Human Race? (O que aconteceu com a raça humana?, em tradução livre).
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"Eu comecei a ser agressivo com meu pai. Eu dizia: 'Se você não fizer uma série sobre aborto, é como se você fosse pró-aborto'. Eu estava usando todos os truques que eu conhecia. E para ele, a questão era 'tudo bem, isso é só mais um dinheirinho extra para o meu filho então vou fazer isso por ele'."
Frank ousou artisticamente na nova série de documentários, com imagens extravagantes e avant-garde de crianças fantasmagóricas vagando pelo mundo e um médico anti-aborto diante de mil bonecas no Mar Morto em Israel.
Como na série anterior, os Schaeffer realizaram outra tour de promoção. Mas desta vez ela foi um fracasso completo. Para tentar salvar a empreitada, pai e filho embarcaram em outro tipo de tour: uma viagem pelos EUA em busca de apoio de outros pastores evangélicos.
Um dos primeiros a serem contatados foi W.A. Criswell, da Convenção Batista do Sul, a segunda maior denominação cristã dos EUA, atrás apenas da Igreja Católica.
"Eles não queriam nem ouvir falar sobre o assunto", lembra Frank.
"O doutor Criswell dizia: 'por que vou me envolver com isso? Por que eu tenho que dizer a alguma mulher que está grávida que ela precisa ter o filho. Eu não vou pregar isso.' Nós tentamos convencer o conselho editorial da revista Christianity Today. Eles responderam: 'Nós achamos que vocês estão errados. Nós não somos pró-vida. Nós achamos que isso é um assunto ambivalente, na melhor das hipóteses. Não vamos nos envolver com isso'."
Feministas x evangélicos
Mas uma resenha elogiando o filme no jornal New York Post mudou os rumos da história do documentário. Outros jornais replicaram a coluna, o que atraiu a ira de feministas.
Associações progressistas e de feministas começaram a protestar em frente a cinemas que exibiam o filme — e isso, por sua vez, atraiu a atenção da grande imprensa.
"Cada vez que isso aparecia na imprensa, multidões de evangélicos iam para as ruas para nos apoiar contra essas feministas raivosas, que eles viam como inimigas", lembra Frank Schaeffer. "Eles não iam protestar por causa do aborto em si, mas por causa de todo o resto da agenda delas, de queimar sutiãs e defender que mulheres tenham carreiras profissionais."
"As feministas estavam nos fazendo um grande favor. Quanto mais , melhor. Nós passamos a ser notícia por causa dessas manifestantes."
Mas o que começou como manifestações pacíficas aos poucos foi ganhando contornos violentos — e a violência virou a tônica do embate sobre o aborto nas décadas seguintes. Mulheres passaram a ser alvo de violência nas proximidades de clínicas de aborto.
Assassinato
Em 1998, um ginecologista que fazia abortos foi assassinado por um ativista. Barnett Slepian foi morto por James Charles Kopp em Amherst, no Estado de Nova York.
A sobrinha de Slepian, Amanda Robb, que diz ter virado jornalista investigativa por causa do assassinato de seu tio, dedicou parte de sua vida entrevistando ativistas anti-aborto que cometeram assassinatos. Em suas entrevistas, ela diz que encontrou um padrão comum: todos eles citaram o documentário de Schaeffer como o estopim de seu ativismo contra o aborto.
"Essas pessoas viram o filme, que era exibido em igrejas, e ele iam a clínicas e bloqueavam a entrada. Eles acabavam presos, mas liberados com uma multa de US$ 50 e de noite já estavam em casa", disse Robb à BBC.
Entre os investigados por Robb estava James Charles Kopp, que assassinara seu tio. Antes de cometer o crime, Kopp havia viajado à Suíça para conhecer a comunidade de L'Abri. Ele também havia escrito uma carta aos Schaeffer elogiando os documentários.
A essa altura da vida, Frank Schaeffer já não participava mais de campanhas contra o aborto — e rejeitava boa parte das doutrinas defendidas por seu pai, que morreu em 1984. Frank conta que se desiludiu com seu pai depois que ele se juntou a Jerry Falwell, pastor evangélico do movimento Moral Majority, que prega contra a homossexualidade.
Francis, que inicialmente incluira o tema do aborto no documentário apenas para agradar seu filho, se tornara um ferrenho ativista contra a prática. Seu livro A Christian Manifesto (Um Manifesto Cristão, em tradução livre), de 1981, é até hoje influente entre os evangélicos que lutam contra o aborto.
Remorso
Frank conseguiu estabelecer uma carreira como diretor em Hollywood em diversos gêneros — de comédia pastelão a ficção científica apocalíptica.
Mas com o passar dos anos, ele passou a sentir remorso pelas consequências de seu documentário sobre aborto.
"Eu passei os últimos 30 anos da minha vida tentando desfazer o dano que causei com aquele documentário. Não acho que eu tenha conseguido qualquer avanço em mudar a mentalidade dos evangélicos, mas o que eu acho que consegui foi falar com pessoas que se desiludiram com o movimento evangélico e o abandonaram", conta.
Frank Schaeffer escreveu um livro de memórias e passou a fazer campanha contra a direita religiosa nas mídias sociais.
"Meu pai e eu temos sangue nas nossas mãos por causa da morte de Barnett Sleppian e muitos outros provedores de aborto. Existe uma linha direta entre o que nós Schaeffers fizemos até Jim Kopp matar um médico por ter lido os livros antiaborto de meu pai e visto os filmes que eu produzi. Eu não tenho palavras para expressar o meu remorso e a profundidade do meu arrependimento por minha estupidez e insensível descaso pela decência e valor pela vida humana."
"Eu imploro por perdão. Eu sou ardentemente pró-escolha e trabalho para defender os direitos das mulheres que eu e meu pai tanto atacamos nos anos 70 e 80."
Mas apesar do arrependimento, a obra de Schaeffer continua tendo a repercussão que sempre teve entre americanos que são contra o aborto — a de angariar novos ativistas.
Rusty Thomas, religioso evangélico que lidera a Operação Salve a América — a maior iniciativa contra o aborto nos EUA, em que ativistas visitam comunidades para pregar sobre o assunto — resume a influência que os Schaeffer tiveram em moldar o debate sobre o aborto nos EUA.
"A maioria das pessoas consideram Schaeffer o pai do combate ao aborto."
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