O filme começa com o pé na porta: a polícia entra em um apartamento para levar um pai, que vive com sua filha, Dalva, a quem pede que se vista e se maquie como uma mulher.
Dalva grita: "não é culpa dele, estou assim porque quero".
E assim, começa uma narrativa vertiginosa pelos meandros do desejo e do controle psicológico, que Nicot conduz com a câmera colada no rosto da garota.
A diretora precisou de quatro anos e meio para elaborar a complexa história, na qual a violência sexual não aparece explícita, mas sim, em um doloroso processo de reconstrução emocional de Dalva (Zelda Samson).
Antes das filmagens, Nicot visitou um centro de acolhimento de crianças vítimas de agressões no oeste da França.
"O que me comoveu foi que conheci muitas crianças retiradas de suas famílias por maus tratos, mas que continuavam apegadas a elas e contra a Justiça", explicou a diretora à AFP.
"Todas estavam em uma espécie de mecanismo de defesa, de negação, extremadamente poderoso", acrescentou.
- Reaprender a viver -
Dalva é internada em um desse lares, onde aprende a se vestir como uma criança, a deixar de se maquiar e a conviver com meninas de sua idade. Tudo sob a supervisão de um jovem educador (Alexis Manenti), que trafega entre a disciplina e o carinho.
Zelda Samson tinha 11 anos quando viu o anúncio de casting e pensou em se apresentar, com a autorização de seus pais. No entanto, garante que não quer ser atriz, mas astrofísica.
"Não tenho desejo de ser atriz. Sei que fiz um filme e que fui muito bem. Talvez voltarei a atuar, talvez não", afirmou sem hesitar à AFP.
"Já está feito, há outras coisas na vida", explicou.
A jovem não esconde, no entanto, sua emoção ao ver o filme pela primeira vez em Cannes."Fiquei muito, muito emocionada. Muito orgulhosa", disse.
Sua atuação lembra a de outras jovens que estrearam em Cannes, como Émilie Dequenne em "Rosetta", filme de 1999 dos irmãos belgas Dardenne.
Com a testa sempre franzida e semblante preocupado, Dalva foge repetidamente de casa em busca do pai.
A hora da verdade acontece no reencontro na delegacia. "Durante muito tempo, o pai não existia" no roteiro, admite Nicot.
"Dalva vivia em uma negação tão forte que eu disse a mim mesmo que só um encontro com o pai dela poderia livrá-la (daquela negação)", explicou.
"Para mim, monstros não existem. Ele é um homem que ama sua filha. Mal, mas ele a ama", diz.
Para Zelda, interpretar aquela cena angustiante com o ator Jean-Louis Coulloch'h também foi um momento decisivo, quando ela "entrou" na pele de Dalva.
"Emmanuelle me pediu para mostrar raiva por aquela cena, mas na realidade foi apenas triste", explicou a jovem.
"Sim, eu poderia ser amiga de Dalva. Gostaria de ajudar alguém assim", concluiu.