O governo da Rússia está analisando a proposta feita pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para a criação de um grupo de países não envolvidos na Guerra da Ucrânia para tentar mediar uma saída pacífica para o conflito que completa um ano nesta sexta (24/2).
A informação foi dada pelo vice-chanceler Mikhail Galuzin em uma entrevista à agência estatal russa Tass nesta quinta (23/2). Ele fez ressalvas óbvias à viabilidade da ideia, dizendo ser preciso levar em consideração a evolução militar do conflito.
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"Nós estamos examinando iniciativas, principalmente sob o ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação em campo", completou, lembrando que os russos são parceiros dos brasileiros, chineses, indianos e sul-africanos no grupo diplomático Brics.
Proposta de Lula
A proposta de Lula, feita inicialmente ao premiê alemão Olaf Scholz em Brasília e levada ao presidente Joe Biden em Washington, prevê uma tentativa de solução do conflito por meio de um "clube de paz" que inclua países como a Índia e a China.
A ideia, claro, foi recebida de forma fria pelos líderes, que mantêm a posição ocidental de buscar derrotar a Rússia militarmente, o que é considerado impossível mesmo pelo principal general americano, Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.
Na semana que vem, o tema poderá ser explorado pelo chanceler brasileiro, Mauro Vieira. Ele estará em Nova Déli (Índia), onde terá oportunidade de se encontrar com seus colegas russo, chinês e indiano em reunião do G20.
Na primeira encarnação de Lula como presidente, de 2003 a 2010, a política externa foi elevada a prioridade, não menos porque era boa vitrine para o momento econômico favorável pelo qual o país passou, aproveitando o boom das commodities puxado pela China.
A reputação acabou arranhada pelo fracasso do acordo nuclear com o governo do Irã, costurado pelo Brasil e pela Turquia, mas bombardeado pelos EUA, e pelo constante apoio a ditaduras de esquerda próximas do PT.
China
A situação atual tem nuances complexas, a começar pela posição da China como eventual mediadora. Nesta quinta, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que "quer se encontrar" com os chineses e que gostaria de vê-los nesta posição.
A fala veio em tom de cobrança. Na véspera, o presidente Vladimir Putin encontrou-se com o principal diplomata chinês, Wang Yi, que reforçou a aliança entre os dois países e preparou o caminho para um novo encontro entre o russo e o líder Xi Jinping.
Vinte dias antes da guerra, Putin e Xi selaram a aliança no contexto da Guerra Fria 2.0 e, embora não seja um acordo militar, a cooperação dos dois países cresceu muito, com patrulhas e exercícios conjuntos. Nesta mesma quinta, as Marinhas da China e da Rússia estão em manobras inéditas com a África do Sul, outro membro do Brics aliás.
Os EUA acusam a China de pretender enviar armas para ajudar os russos, o que Pequim nega. Nesta quinta, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, foi na mesma linha: "Nós alertamos contra isso. A China não deve apoiar a guerra ilegal da Rússia, é claro".
Por outro lado, os chineses têm mostrado ambiguidade: não condenam os russos, mas insistem em que a guerra deve parar. Em debate na ONU nesta quinta, o embaixador-adjunto da China no órgão, Dai Bing, disse que "os fatos brutais oferecem ampla prova de que enviar armas não trará paz", cutucando os EUA.
'Clube da paz'
Isso joga dúvidas sobre a validade de um "clube da paz", em especial sem seu ator mais musculoso. Mas também é notável que há uma percepção crescente no Ocidente de que a guerra pode ter unido o bloco de países liderados pelos EUA, mas que outras nações não necessariamente alinhadas à China ou à Rússia têm postura independente.
"Estou muito impressionado com como estamos perdendo a confiança do Sul Global", disse no sábado (18) o presidente francês, Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, sobre como se comportam na guerra países abarcados pelo termo, como Brasil e Índia.
A deferência russa a Lula é também tributo à posição brasileira na guerra, criticada nos EUA. Gulazin citou até a negativa do petista de vender munição brasileira de tanques Leopard-1 para a Alemanha repassar à Ucrânia, revelada pela Folha de S.Paulo em janeiro.
"Eu gostaria de enfatizar que a Rússia valoriza a posição equilibrada do Brasil na atual situação internacional, sua rejeição à medidas de coerção tomadas pelos EUA e seus satélites contra nosso país, e a recusa dos nossos parceiros brasileiros em fornecer armas, equipamento militar ou munição para o regime de Kiev", afirmou.
Brasil 'se colocar no lugar da Ucrânia'
Na semana passada, uma alta funcionária da diplomacia americana, a subsecretária de Estado Victoria Nuland, disse que o Brasil deveria "se colocar no lugar da Ucrânia". "Ao mesmo tempo, nós vemos como Washington está colocando pressão sobre o Brasil. Tal instância soberana merece respeito", disse Gulazin.
Lula segue a posição do antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que visitou Putin uma semana antes da guerra. Rivais, ambos os políticos mantiveram a tradição do Itamaraty em caso de conflitos internacionais: a busca por soluções pacíficas e distanciamento, procurando preservar seus interesses.
Assim, o Brasil foi 1 dos 141 países que condenaram a invasão russa em votação na ONU, mas recusou-se a adotar o draconiano regime de sanções econômicas liderado pelo Ocidente contra a Rússia. Ficou, desta forma, fora da lista de do Kremlin de países hostis e garantiu seu interesse principal: manter o fornecimento de fertilizantes russos, que dominam 30% do mercado brasileiro.
Nesta quinta, foi novamente 1 dos 141 países a apoiar a resolução pedindo o fim do conflito, e teve participação específica no parágrafo 5º do texto, que reitera a necessidade de desocupação da Ucrânia. Buscando estabelecer equidistância, foi a única nação dos Brics a não votar contra ou se abster.
Bolsonaro
Bolsonaro também negou ajudar a mesma Alemanha a obter munição para os blindados de defesa antiaérea Gepard, que o Brasil opera, enviados por Berlim a Kiev. Com efeito, antes do segundo turno de 2022 no Brasil, Putin disse à Folha de S.Paulo que tinha boas relações tanto com o petista quanto com o então presidente.
Já na campanha eleitoral, Lula causou polêmica ao dizer que Zelenski era tão culpado pela guerra quanto Putin. Presidente, modulou o tom dizendo que a Rússia não deveria ter invadido, mas instou ambos a negociar. Críticos do petista afirmam que a postura brasileira desconsidera a tragédia humana iniciada pela Rússia.