Num primeiro momento, aquele chamado parecia uma utopia para uma mulher pobre, negra e brasileira. Mas, ciente de que todas as portas no Brasil estavam fechadas para ela justamente por aquelas condições sociais, decidiu ouvir a voz da razão. Fez as malas e, com as poucos economias de que dispunha, cruzou o Atlântico. "Foi uma libertação", diz.
Nada nessa chegada a Portugal foi fácil. Eva, como os amigos a chamam, levou um susto com as diferenças culturais em relação ao Brasil. Apesar de o português ser a língua materna dos dois países, quase não compreendia o que os moradores de Lisboa, onde aportou, falavam. Era um suplício.
No primeiro mês, ela ficou morando com o irmão mais velho que mal conhecia, pois ele havia saído de casa aos 13 anos. "Posso dizer que o período em que eu mais convivi com meu irmão durante toda a vida foi nesses 30 dias", afirma. Dali, já empregada, ela alugou um quarto. E foi assim ao longo de três anos, quando, finalmente, pode realizar o sonho de morar sozinha, ser dona do próprio espaço. "Aluguei um apartamento e a minha vida deu um salto de qualidade. Estava, naquele momento, assumindo o controle total sobre mim."
Vinte e um ano depois de pisar na terra de Cabral, Eva só tem a agradecer. A jovem sonhadora que tinha estudado até o segundo grau formou-se em serviço social e, depois, concluiu o mestrado em políticas sociais. "Portugal me salvou. Minha inquietação em relação ao mundo não cabia em Rondônia, onde nasci e cresci", ressalta.
"Entrei em uma faculdade portuguesa 10 anos depois de ter deixado o banco da escola. Me beneficiei das boas notas que tinha no Brasil, mas só tive noção disso quando saiu a equivalência escolar", relembra. A assistente social, especialista em políticas públicas e, agora, esteticista diz ter a certeza de que fez a escolha correta e vê com bons olhos o enorme fluxo de brasileiros para Portugal.
Comunidade crescente
Se as projeções de especialistas ouvidos pelo Correio se confirmarem, Eva verá o número de brasileiros vivendo em Portugal chegar a casa do 1 milhão nos próximos cinco anos, o equivalente a 10% da população total do país europeu. O fluxo migratório do Brasil para terras portuguesas vem crescendo a taxas de dois dígitos ao ano desde 2017.
O último dado oficial disponibilizado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de dezembro de 2022, aponta que 239,1 mil brasileiros tinham autorização de residência no país. Essa informação, porém, está totalmente defasada. Apenas entre 13 de março, quando foi lançado o sistema on-line de regularização de cidadãos dos países da Comunidade de Língua Portuguesa (CPLP), até o final de junho, mais de 100 mil brasileiros tinham sido beneficiados.
Com isso, ressalta o embaixador Leonardo Gorgulho, secretário de Comunidades Brasileiras e Assuntos Consulares e Jurídicos do Itamaraty, é possível dizer que a população legal de brasileiros em Portugal esteja entre 350 mil e 400 mil. As estatísticas não contemplam, porém, os que ainda estão indocumentados e aqueles que têm dupla nacionalidade, por serem descendentes diretos de portugueses — até os bisnetos são reconhecidos pela legislação atual.
Somando esses grupos, o advogado Fábio Pimentel, do escritório Pimentel Aniceto Associados, especializado em imigração, calcula entre 600 mil e 700 mil a comunidade brasileira hoje espalhada por Portugal. "Por isso, falar em 1 milhão em até cinco anos é factível", frisa.
Para Pimentel, há um interesse enorme do governo de Portugal de que brasileiros migrem para o país. E há razões de sobra para isso. Primeiro, e mais importante, é a necessidade premente de mão de obra em vários setores da economia. Somente no ramo de turismo, há 45 mil vagas abertas, sem perspectiva de preenchimento a curto prazo, segundo a Associação da Hotelaria de Portugal (AHP).
"Há um problema demográfico em Portugal, a população está envelhecida e os jovens que se formam preferem migrar para outros países da União Europeia, onde os salários são melhores", explica. "Portanto, a solução para resolver os gargalos da economia passa pela atração de mão de obra estrangeira", enfatiza.
CEO do escritório Martins Castro, Renato Martins reforça que Portugal já fez a sua escolha pelo público que quer atrair: os brasileiros. E cita o fato de, nas mais recentes visitas que fez ao Brasil, o presidente português, Marcelo Rebelo de Souza, ter aproveitado para anunciar facilidades no sistema de imigração. Uma delas, foi a criação de um visto temporário, de até 180 dias, para que interessados pudessem procurar trabalho em Portugal.
As autorizações passaram a ser emitidas diretamente pelos consulados portugueses espalhados pelos países da CPLP. Pouco antes da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Portugal, em abril, onde participou de uma reunião de cúpula, veio o programa digital do SEF para autorizações de residência, beneficiando quem estava à espera do documento desde 2021.
"Por mais diferenças culturais que existam entre Brasil e Portugal, os brasileiros são os que se encaixam mais facilmente na estrutura social portuguesa. As facilidades de emigração valem para toda a CPLP, mas miram, sobretudo, os cidadãos do Brasil. Não se pode esquecer que toda política migratória busca a coesão social", destaca Martins.
"Os brasileiros são mais flexíveis, com enorme facilidade para lidar com o público, o que faz uma diferença enorme", acrescenta Fábio Pimentel. Isso fica explícito nas declarações da presidente da Associação da Hotelaria de Portugal, Cristina Siza Vieira, de que os brasileiros se adequam muito bem às funções do setor.
Burocracia emperra
Tanto Fábio Pimentel quanto Renato Martins acreditam que o fluxo migratório para Portugal só não é maior por causa de barreiras burocráticas impostas pelos órgãos públicos, em especial, o SEF, que está com os dias contados, pois será substituído a partir de outubro pela Agência Portuguesa para as Minorias, Migrações e Asilo.
“A legislação de Portugal é avançadíssima na questão migratória, o que atrapalha é a burocracia. Hoje, há milhares de pendências de pedidos de reagrupamento familiar, quando um estrangeiro com autorização de residência no país quer estender o benefício a parentes próximos, como filhos e cônjuges”, explica Pimentel.
O CEO da Martins Castro, Renato Martins, ressalta que o governo e o Parlamento portugueses estão praticamente alinhados sobre a necessidade de atrair mão de obra estrangeira para manter o país funcionando. “Estima-se que o deficit de trabalhadores esteja entre 700 mil e 800 mil, e o Brasil surge como principal fornecedor para reverter essa necessidade”, destaca.
Ele lembra que, no plano de governança de Portugal até 2026, há menções claras a acordos de mobilidade com os países da CPLP e a políticas de atração para o país de netos e bisnetos de portugueses. “Portugal sabe que não pode errar na questão migratória. Na França, muito dos conflitos nas ruas hoje decorre da não inserção dos imigrantes à sociedade”, complementa.
Há, porém, setores dispostos a construir muros para conter a chegada de brasileiros. Na última terça-feira, a Ordem dos Advogados de Portugal (OAP) rompeu, unilateralmente, o acordo de reciprocidade com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), assinado em dezembro de 2008.
Pelo tratado, profissionais dos dois países não precisavam fazer estágio nem passar por cursos específicos para obter o registro. A partir de agora, não há mais essas facilidades. A OAB disse que recorrerá da decisão e espera que a Assembleia da República anule o ato administrativo da Ordem com base em lei aprovada em 2015 ratificando a reciprocidade.
Outro segmento extremamente reticente a profissionais brasileiros é o de médicos. A Ordem que representa a categoria cria todo tipo de dificuldade para reconhecer os diplomas emitidos por universidades do Brasil, sob a alegação de que há deficiências na formação dos profissionais. Enquanto isso, o sistema de saúde de Portugal está à beira do colapso, sem médicos e enfermeiros para atender a população.
A escassez é tamanha, que emergências de hospitais deixaram de funcionar 24 horas por dia. Essa resistência da Ordem dos Médicos motivou o governo a encaminhar ao Parlamento um projeto para reestruturar as entidades profissionais, que adquiriram poder acima do normal para garantir reserva de mercado.
Perfil dos sonhadores
Com centenas de milhares de seguidores nas redes sociais, a carioca Patrícia Lemos, do Vou mudar para Portugal, tornou-se uma das referências quando o assunto é viver no país europeu. Ela afirma que, desde meados do ano passado, vem observando uma mudança no perfil dos interessados em deixar o Brasil.
“Até metade de 2022, a maioria dos que participavam da nossa jornada — cada turma de cursos tem, em média, 300 pessoas —, tinha como principais demandas informações sobre a segurança em Portugal e o mercado de trabalho. Agora, impera a perspectiva de futuro, ou seja, como garantir uma vida melhor para os filhos, que serão educados em um país da União Europeia”, diz.
Esse público, no geral, é de classe média alta, que aceita se sacrificar abrindo mão de profissões mais bem remuneradas no Brasil para exercer, em Portugal, atividades que, muitas vezes, não exigem tanta qualificação e, por isso mesmo, pagam menos.
“As escolas públicas e as universidades portuguesas são, no geral, excelentes. Do país, é possível estender a formação dos filhos em outras localidades da Europa, garantindo uma futura internacionalização das carreiras profissionais. Isso tem pesado bastante na decisão de mudança para Portugal”, emenda Patrícia. Vale ressaltar, nesse ponto, que 49% dos alunos de mestrados das universidades de Lisboa e de Coimbra são brasileiros.
Para entender melhor o público que a demanda, Patrícia decidiu fazer uma pesquisa qualitativa que a subsidiará nos trabalhos que vão muito além dos conselhos básicos e incluem até ajuda para encontrar uma moradia para comprar.
Foram ouvidas 4.847 pessoas, das quais 68,4% são mulheres e 31,6%, homens. A maioria, 70,5%, tem entre 26 e 50 anos, 56% dizem ter planos de deixar o Brasil em direção ao país europeu, sendo que 12,7% já começaram a se planejar para isso. Detalhe importante: apesar da recente mudança no perfil do público atendido por Patrícia, 60,6% dos entrevistados afirmam ter renda familiar inferior a R$ 5 mil.
Por isso, a responsável pelo programa Vou mudar para Portugal alerta para os riscos de uma emigração sem planejamento. “A pandemia e a guerra na Ucrânia provocaram mudanças enormes em Portugal. Os preços subiram demais e os salários não acompanharam.
O salário mínimo é de 760 euros (R$ 4,1 mil). Descontados os impostos, cai para 690 euros (R$ 3,7 mil). Com esse dinheiro, não se vive bem nem nas regiões mais remotas do país. Em Lisboa, o aluguel de um quarto, muitas vezes sem banheiro privativo, não sai por menos de 800 euros (R$ 4,3 mil). Então, não dá para apostar em aventuras”, avisa.
Patrícia está coberta de razão. Assim como muitos brasileiros se mudaram para Portugal atrás do sonho de uma vida melhor, muitos tiveram de retornar para o Brasil meses depois, pois perceberam que fizeram cálculos errados, por não terem se organizado adequadamente. No ano passado, dos 1.051 estrangeiros que se inscreveram no programa de repatriação bancado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), das Nações Unidas, 913 tinham nacionalidade brasileira — um recorde. Deles, efetivamente, 394 foram ajudados.
Xenofobia e racismo
O goiano Guilherme Martins da Silva, 33 anos, supervisor de um restaurante japonês em Almada, cidade ao Sul de Lisboa, conta que se mudou para Portugal em 2017, por conta de um relacionamento amoroso. "Mas faço questão de dizer que a vida no país não é nada do que eu esperava. As pessoas acham que a Europa é só glamour e não se dão conta do que somos submetidos, dos trabalhos que temos de fazer para sobreviver com o mínimo de dignidade", frisa.
"Além disso, estamos longe das nossas famílias e existe, sim, xenobofia e racismo contra brasileiros e africanos. Muitas vezes, temos de calar a boca porque não estamos no nosso país", lamenta.
Ele reconhece, porém, que todas as dificuldades que tem enfrentado fizeram dele um homem e um profissional melhores, mais preparados para a vida. "Não posso negar. Em Goiânia, onde era cantor de uma banda de baile, estava dependente da família. Agora, sei o que é enfrentar os problemas que todos temos", ressalta. É esse crescimento interior e profissional que o faz permanecer até agora em Portugal, onde mora com o companheiro no Morro da Caparica, região praiana. "Além disso, tem toda a questão da segurança. Abrir mão disso é difícil", diz.
Foi a garantia de segurança que fez a carioca Kenya Maeda, 48, gestora de eventos, trocar o Brasil por Portugal. "Em 2013, numa tentativa de assalto na Linha Vermelha, no Rio, num domingo, com o meu marido, a minha mãe e o meu cão, levei dois tiros, um no ombro, outro na perna. A partir dali, mesmo tendo uma vida estável, tendo conquistado uma certa estabilidade, com uma rede grande de família e de amigos, passei a me sentir sufocada. Todas as coisas que eu gostava de fazer, como caminhadas, viajar, começaram a ficar inviáveis", lembra.
A partir dali, ela começou a fazer um levantamento de onde poderia viver em paz, levando em conta clima, condições econômicas e, sobretudo, de moradia. A principal opção foi Portugal.
Antes, porém, de bater o martelo, Kenya e o marido, Flávio Gimenes, fizeram uma viagem de 25 dias pelo país europeu para conhecer suas particularidades. E adorou. No Brasil, tratou de fechar a empresa de sua propriedade e de organizar o que seria a vida no estrangeiro. De início, a ideia dos dois era tirar um ano sabático para fazer uma pesquisa de mercado e abrir o próprio negócio.
Passado esse prazo, criaram uma firma de imagens de 3D, pois só havia uma no país. Contundo, a realidade se impôs. Kenya e o marido descobriram que nenhum empreendimento iria para frente se não houvesse conhecimento de pessoas locais para abrir as portas do mercado. Um ano depois, sem nenhum cliente, a empresa foi fechada.
Resiliência e foco
Decepção à parte, havia a questão da segurança. E disso Kenya não abria mão. Ela e o marido conseguiram emprego, mas, ao longo do tempo, a carioca abriu mão do trabalho por não ter se adaptado à cultura empresarial local. Hoje, cercada de amigos, conseguiu abrir uma frente própria de atuação no mercado e se diz muito feliz. "Para aqueles que estão pensando em se mudar para Portugal, recomendo resiliência e foco. A pessoa vai cair e se levantar várias vezes. Será preciso se reerguer, se reinventar, se moldar. Esse é o caminho para dar certo", afirma.
A fotógrafa Danielle Medeiros, 46, também se viu vítima da violência no Rio de Janeiro. Há seis meses em Portugal, ela, o marido e o filho caçula, de seis anos, optaram por morar em Oeiras, próximo a Lisboa, mas com ótima infraestrutura e sem o tumulto de uma cidade com grande número de turistas. Ela conta que a primeira vez que pensaram em se mudar para o país europeu foi em 2018, quando passaram um mês de férias em território luso. "Voltamos para o Brasil com a sementinha plantada na cabeça, mas ainda não era o momento, por questões profissionais e para que houvesse uma estabilidade financeira", assinala. "Nesse período, fomos nos organizando."
Em 2021, veio o fato que acelerou todo o processo. O marido de Danielle sofreu um assalto — ele estava com o filho caçula no carro. "Ali, decidimos, efetivamente, que era hora de nos mudarmos para um lugar mais seguro. Além disso, a perspectiva de dar uma vida melhor para o nosso filho era um grande motivador", conta.
"Tudo ficou mais fácil porque o meu marido, que havia se aposentado, tinha cidadania italiana. Assim, quando chegamos em Portugal, fiz o reagrupamento familiar. Isso nos deu uma segurança importante. Sem isso, jamais viria", frisa, ressaltando que o filho mais velho mora na Austrália e a filha continua no Rio — ambos são do primeiro casamento. "A vida está tão boa, que o meu marido, o mais reticente em relação à mudança, foi o que se adaptou mais rapidamente à nova realidade", diz Danielle.