O episódio aconteceu em 1996, quando Emily Alison tinha 22 anos. Ela trabalhava em um hospital de segurança máxima nos Estados Unidos e estava dentro de um elevador na companhia de quatro homens com históricos de doença mental e condenados por crimes violentos.
Segundo as regras, os quatro detentos deveriam sair do elevador antes dela.
Mas quando chegaram ao andar de destino, um dos prisioneiros - um indivíduo corpulento, com mais de 1.80 metro de altura e pesando quase 100 kg - decidiu subverter a ordem. “Primeiro as damas”, disse. “Você sai primeiro, Emily.”
Jerome tinha esquizofrenia. Aos 19 anos de idade, tinha sido condenado pelo assassinato de sua vizinha. Achava que ela estava espionando sua vida e gravando suas conversas para a CIA. Tinha batido na porta da casa dela às 3 da tarde e martelado sua cabeça 12 vezes. A vizinha tinha 82 anos.
O detento conhecia o regulamento. Sua recusa em sair primeiro era um desafio às normas e também à autoridade da jovem.
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Tortura, desaparecimento e exílio: as feridas abertas pela ditadura chilenaCentro de tortura argentino a um passo de se tornar Patrimônio Mundial da UnescoSeis policiais brancos admitem tortura a dois homens negros nos EUAEla também sabia que, se pedisse socorro pelo rádio, seria provavelmente espancada até a morte no elevador. Levaria dois minutos para o socorro chegar - mas ela poderia estar morta em apenas 30 segundos.
Como sair daquele impasse?
Anos mais tarde, em 2012, agora uma renomada psicóloga forense, Emily Alison foi convidada pelo governo dos Estados Unidos a investigar a seguinte questão: qual seria o método mais eficiente de se obter informações confiáveis de suspeitos de crimes? Em outras palavras, seria a tortura um recurso eficaz?
Trabalhando com o marido - o também psicólogo forense Laurence Alison - Emily analisou duas mil horas de gravações de interrogatórios policiais.
Ela diz ter concluído que tortura não funciona e, na verdade, compromete a qualidade da informação. O que funciona, diz, é “rapport” - palavra de origem francesa que dá título ao novo livro da dupla e pode ser traduzida como “conexão entre duas pessoas baseada na empatia”.
Em entrevista à apresentadora Helen Lewis, do programa The Spark, da BBC Radio 4, Emily explica que a habilidade de interagirmos com o outro dessa forma é extremamente valiosa em todas as esferas da vida.
Na sua experiência pessoal, conta, “rapport” tem sido útil em programas de reabilitação que oferece a prisioneiros, em intervenções que ela faz em situações de violência doméstica, no convívio com colegas difíceis no trabalho e na lida com o filho adolescente.
A BBC News Brasil destaca para você, a seguir, alguns trechos do livro e da entrevista de Emily Alison. O que ela aprendeu analisando os interrogatórios policiais? O que é a arte do “rapport” e como praticá-la? Mas antes, ela explica como foi que conseguiu sair ilesa daquele elevador.
Presa no elevador com quatro detentos perigosos
“Naquele momento, com 22 anos de idade, eu não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Foi só mais tarde, em retrospectiva, que eu pude entender por que minha estratégia funcionou e o poder daquilo.”
“Basicamente, o que eu decidi fazer foi, com firmeza, manter minha posição. Mas também não escalar, não desafiá-lo e não erguer minha voz. “
Ela descreve o diálogo entre os dois.
“Você tem de sair primeiro, essas são as regras”, eu disse.
“Eu não gosto de regras”, ele respondeu.
“Eu entendo, também não gosto de regras, mas é assim que as coisas são. Você precisa sair primeiro.”
“Bom, não vou sair”, ele respondeu.
Emily conta que pensou, e agora? O que vou fazer?
De novo, calmamente, ela respondeu:
“Eu não posso sair do elevador até você sair. Vamos jogar sinuca? Vai ser mais divertido do que você ficar plantado aqui comigo.”
Emily diz que quase podia ler os pensamentos do prisioneiro. “Quero escalar essa situação? Quero comprar essa briga, entrar em um confronto físico? Ou vou simplesmente fazer o que ela quer que eu faça?”
“Ele saiu do elevador”, ela conta.
Anos mais tarde, refletindo sobre o episódio em seu livro, Emily sugere que a forma como falou com Jerome construiu uma conexão invisível, porém forte, entre os dois, “como a teia de uma aranha”.
Para ela, foi isso o que impediu que ele a atacasse e permitiu que “ambos saísemos do elevador com nosso orgulho e corpos intactos”.
O livro “Rapport” traz inúmeros relatos de interações entre indivíduos onde essa mesma estratégia oferece resultados positivos. Em todos os casos, a mensagem é a mesma:
“Seja quando alguém tenta conseguir informações de um terrorista ou convencer um adolescente a sair da cama para ir à escola, nossa mensagem é, força é um caminho muito destrutivo para se alcançar esses objetivos”, diz Emily, que é especialista em comunicação e cooperação com suspeitos de crimes, trabalha em interrogatórios para o FBI e também é pesquisadora da University of Liverpool, no Reino Unido.
O importante é que a pessoa não perca de foco o objetivo daquela interação, prossegue.
“Se ela fica tentada a usar a força, isso com frequência corrompe ou danifica o alcance daquele objetivo.”
Não dá para imaginar a ala mais linha-dura da Polícia aplaudindo essa proposta. E de fato, durante a entrevista, Emily admite que encontra bastante resistência à sua abordagem.
No livro, se defende dizendo, “não somos ingênuos. Tortura não funciona, mas chá com biscoitos também não.”
Existem situações nas quais obter informações de uma pessoa torna-se uma questão de vida ou morte, escreve. Por isso, prossegue, ela e Laurence sabiam que qualquer método que criassem teria de ser amparado por evidências cientificas que comprovassem sua eficácia.
Bem, a comprovação, ela diz, veio a partir das análises científicas de duas mil horas de interrogatórios com indivíduos suspeitos de envolvimento em extremismo internacional, extremismo doméstico e atividades paramilitares. Todos os suspeitos foram mais tarde condenados por seus atos. As entrevistas foram conduzidas por unidades de combate a extremismo do Reino Unido e da República da Irlanda.
“É o maior arquivo do mundo de gravações de interrogatórios policiais com suspeitos de terrorismo. É nisso que baseamos nosso modelo - que chamamos Orbit.”
(“Orbit” é também o título de um outro livro dos pesquisadores, este com aplicações militares em interrogatórios policiais.)
Por que torturar suspeitos não gera informações confiáveis?
Emily conta que, enquanto ouviam horas e horas de gravações, ela e Laurence tentavam identificar estratégias que levassem o indivíduo a falar. Mas também era importante que a informação tivesse valor como evidência e fosse capaz de gerar inteligência para os interrogadores.
“Esse deve ser o objetivo de um interrogatório”, ressalta. “Não é uma questão de vingança, ou de dizer a essa pessoa o que você pensa sobre o que ela fez, não é uma questão de fazê-la sentir vergonha. O objetivo é conseguir a informação.”
O livro descreve um interrogatório realizado na notória prisão militar americana de Guantánamo, em Cuba, onde os Estados Unidos mantêm presos suspeitos de extremismo.
Durante a sessão, o interrogador ordena ao prisioneiro que lhe dê alguma informação, caso contrário, será torturado. O método de tortura é conhecido em inglês como “water boarding” (ou simulação de afogamento).
O prisioneiro oferece algumas informações, mas é torturado mesmo assim.
Emily argumenta que, a partir desse momento, não há razão para que o prisioneiro compartilhe informações confiáveis.
“Todo mundo viu aquele filme de ação onde o bandido é pendurado no topo de um prédio e finalmente dá a informação”, ela diz. “Essa é uma narrativa muito sedutora, a ideia de que se você não me disser, vou fazer você dizer, e o jeito de eu conseguir isso é por meio do medo.”
“Medo altera o comportamento das pessoas, e ameaçar alguém com afogamento vai com certeza provocar uma reação”, diz.
E chegamos ao “X” da questão: por que provocar medo não funciona? Ela responde:
“Em uma pessoa que seja linha-dura, isso pode aumentar sua resistência. Por outro lado, alguém que está muito assustado e nunca esteve preso antes pode dizer qualquer coisa, só para fazer você parar.”
“Se o seu objetivo é informação que tenha credibilidade e evidências, será que esse método está alcançando esse objetivo?”, questiona Emily.
“E o que dizemos é, não há evidências de que o uso de tortura produza informação crível ou inteligência.”
Em seu livro, Emily e Laurence escrevem que interrogadores de verdade sabem que criar algum tipo de conexão é a forma mais confiável de se obter informações críveis e entendem o dano que força e coerção podem causar. “Tortura foi trazida” (para a sala de interrogatórios) “por charlatães e principiantes”, escrevem.
Mas não adianta apenas dizer aos policiais que tortura não funciona. É preciso oferecer soluções, ela diz. Então, em vez do medo e da força, o que Emily Alison ensina aos policiais que participam de seus cursos intensivos sobre como interrogar suspeitos é “rapport”.
O que é ‘rapport’?
No contexto policial a palavra “rapport” foi ganhando significados diferentes ao longo do tempo, diz Emily.
“Virou algo que se parece com um truque, como oferecer (ao prisioneiro) uma bebida quente, abrir a janela, perguntar como ele passou a noite.”
“Isso são amabilidades. Ajudam, mostram compaixão e preocupação com o outro.”
Mas quando falamos em “rapport”, estamos falando em compreender o outro, ela explica.
“Isso não quer dizer que vocês têm de gostar um do outro. Que têm de compartilhar dos mesmos valores, que tem de concordar com o que o outro está falando. O que “rapport” quer dizer é que você tem de ter curiosidade. Tem de querer entender as motivações do outro, as razões do outro.”
Para um policial que faz um interrogatório, isso é um grande desafio, prossegue:
“ ‘Rapport’ quer dizer entrar na mentalidade da pessoa, colocar sua mente em uma posição que te permita entender por que essa pessoa fez o que fez, não importa quão terrível (o ato), não importa o quanto isso viole os seus valores.”
Entre os vários estudos de caso incluídos no livro de Emily está uma entrevista com um prisioneiro que havia sequestrado alguém. O entrevistador diz logo no começo, “estou aqui para impedir que você faça isso. Estou aqui para parar você.” Uma estratégia que, o livro mostra, obteve resultados extremamente positivos.
Comentando esse caso, Emily explica que falar sempre a verdade é um dos fundamentos do modelo de interação que ela propõe. Mentir, assim como a tortura e o medo, não produzem resultados positivos.
“O que estamos sempre dizendo aos nossos interrogadores é, você não pode fingir que não está investigando alguém que você está investigando. Se você finge, e eles acreditam, então você não deveria estar investigando essa pessoa porque essa pessoa é vulnerável e não entende os termos da interação. E alguém que entende o que é uma entrevista policial nunca vai acreditar que você não está investigando. Então, por que fazer isso? Você não precisa mentir, você pode ser direto.”
Na introdução de “Rapport”, Emily avisa aos leitores: esse não é um livro sobre como persuadir pessoas a comprar coisas de que não precisam, nem sobre como fazer um truque para forçar pessoas a dizer algo que não querem dizer.
Quando existe “rapport”, a pessoa não sai da sala desconfiada, pensando, “será que me passaram uma conversa?” Construir “rapport” genuíno é criar uma convexão autêntica, baseada em respeito, dignidade e compaixão - independentemente da forma como o outro se comporta em relação a você, escreve.
Indo além da sala de interrogatórios, a psicóloga argumenta que um modelo de interação baseado em “rapport” pode ter papel importante no mundo polarizado em que vivemos.
“Se o adolescente sabe que você não aprova que uma pessoa consuma maconha, isso não quer dizer que você não esteja interessado em ouvir o ponto de vista dele, não quer dizer que você não possa discutir o assunto”, ela diz.
“Como sociedade, estamos perdendo essa habilidade de ouvir a posição das outras pessoas.”
Mas como funciona na prática esse jeito de se comunicar com o outro que Emily e Laurence propõem?
Em seu depoimento à BBC Radio 4, a psicóloga compartilhou um pouco do que ensina em suas sessões de treinamento para policiais.
Os 4 estilos animais de comunicação e a arte do ‘rapport’
Emily Alison explica que o seu modelo de interação se baseia nas diferentes formas de comportamento interpessoal identificadas pelo psicólogo americano Timothy Leary na década de 1950. Conhecido por seus experimentos com LSD, Leary também criou um modelo para o entendimento das interações humanas chamado Interpersonal Circumplex.
“O que fizemos foi pegar o que é um modelo muito sofisticado de como as pessoas interagem umas com as outras e tentar transformá-lo em algo que você pode usar no meio de uma interação”, explica.
“Nós o resumimos em quatro modos principais de comunicação.”
No eixo vertical, no topo da roda, está o leão, explica Emily.
“Dominante, mandão, no comando. Um líder, gosta que os outros sigam suas ordens, aconselha, decide o que vai acontecer.”
No ponto oposto, na base da roda, está o camundongo.
“Muitos acham que essa é uma posição fraca, mas não necessariamente. A paciência, a habilidade de ouvir, de pensar, de refletir sobre as coisas, tudo isso está no camundongo.”
“Na verdade, na nossa pesquisa, os comportamentos positivos do camundongo - o estilo adaptativo do camundongo, não o fraco, hesitante, incerto, mas o paciente, pensativo, o que ouve - estão associados com a habilidade de obter a maior quantidade de informações das pessoas.”
No eixo horizontal da roda temos o T-Rex e o Macaco, prossegue Emily.
“O T-Rex é o conflito. Mas tem uma versão boa do T-Rex, um jeito bom de ter conflito e de ter uma discussão. Isso quer dizer, ser franco, direto, sincero.”
“Tem também o jeito ruim, que é ser sarcástico, atacar, insultar, exigir.”
O quarto estilo, o do macaco, está associado à habilidade de colaborar e cooperar com o outro. O lado menos positivo desse tipo de interação é que ela pode gerar excesso de familiaridade e uma certa dificuldade em estabelecer limites na relação com a outra pessoa.
“O que sempre dizemos é, temos de aprender a dominar os lados bons de cada um desses modelos. E nos livrarmos daqueles lados associados com a versão ruim do animal.”
Depois, a pessoa precisa aprender a perceber, em cada contexto, que estilo de comunicação a situação está pedindo.
“Isso envolve sensibilidade”, ela diz. E adotar certas posições - por exemplo, a posição do camundongo - requer, muitas vezes, humildade.
“Você tem de abandonar seu ego para adotar a posição do camundongo de maneira tática. Algumas pessoas são boas nisso, gostam de operar dessa forma. Mas se você não é um camundongo e tem de ser, a sensação que você tem é de que está abrindo mão do seu poder, da sua autoridade.”
“Mas lembre-se do seu objetivo”, insiste Emily. “Mesmo que você não seja, naquele momento, o leão, se o seu objetivo é fazer com que aquela criança, a longo prazo, obedeça as regras, ou não fume maconha, ou chegue à escola no horário, e se o camundongo vai te ajudar a fazer aquilo, por que não colocar o esforço e a energia naquilo?”
Ao final de sua entrevista, Emily Alison admite que praticar “rapport” pode ser muito cansativo. “Requer atenção constante, dá mais trabalho”, diz.
E aos que se perguntam, mas o que eu tenho a ganhar com isso?, ela escreve em seu livro:
Estudos mostram que a profundidade e importância dos nossos relacionamentos pessoais e profissionais estão intimamente associados à nossa saúde mental e à nossa longevidade.