Jornal Estado de Minas

Qual pode ser o impacto da medida provisória que protege agentes públicos de punição durante pandemia?

Parlamentares de oposição criticaram a medida provisória como uma suposta tentativa do presidente de blindar a si mesmo e agentes públicos em geral de serem responsabilizados por má gestão de recursos ou condução inadequada de políticas públicas na pandemia (foto: Reuters)

O presidente Jair Bolsonaro editou nesta quinta-feira (14) uma medida provisória (MP 966) estabelecendo que agentes públicos só poderão ser punidos na esfera civil e administrativa por atos cometidos no enfrentamento da pandemia do coronavírus quando agirem com dolo (intenção) ou cometerem erro grosseiro. A previsão vale tanto para ações na área de saúde, como as medidas que buscam reduzir os impactos econômicos da doença.



A MP está em vigor temporariamente e precisa ser aprovada pelo Congresso para ter vigência permanente. Seu texto prevê ainda que deve ser considerado erro grosseiro "o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia".

Parlamentares de oposição criticaram a medida provisória como uma suposta tentativa do presidente de blindar a si mesmo e agentes públicos em geral de serem responsabilizados por má gestão de recursos ou condução inadequada de políticas públicas na pandemia.

"Bolsonaro não é só aliado do vírus, é aliado da corrupção, de criminosos e predadores do erário!", escreveu no Twitter o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), um dos que protocolou um pedido ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) para devolver a medida provisória ao presidente.



Já o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), José Múcio Monteiro, disse ao jornal Estado de S.Paulo que a MP vai estimular uma "pandemia de mal-intencionados".

Apesar da forte reação de autoridades, especialistas em direito público ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a medida provisória está em linha com legislação brasileira já em vigor, que protege os agentes públicos de serem punidos em caso de erros que não sejam intencionais ou muito graves.

É o que diz o artigo 28 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro".

Já o artigo 22 dessa mesma lei prevê que, "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados".

Jurista diz que não seria capaz de proteger o governo de Jair Bolsonaro na hipótese, por exemplo, de o Ministério da Saúde tomar medidas que contrariem pesquisas científicas (foto: Alan Santos/PR)

Esse trecho, apontam juristas entrevistados, tem redação similar a parte da nova MP que estabelece que devem ser considerados, na análise das decisões da pandemia, "os obstáculos e as dificuldades reais do agente público", "a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público", "a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência", e "as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público".



Segundo Patrícia Sampaio, professora da FGV Direito Rio, a proteção garantida pela lei brasileira serve para impedir que gestores públicos bem intencionados fiquem com medo de tomar decisões. "Essa medida provisória é aderente às normas que já existiam. É importante dar um conforto para o gestor de boa fé. Em nenhum momento essa MP me parece que está afastando a responsabilidade do gestor de má fé, do gestor mal intencionado, do gestor que vai cometer atos de corrupção", afirma Sampaio.

"A norma se aplica do Presidente da República ao chefe de uma unidade hospitalar, por exemplo. Esse gestor pode ter que decidir se faz uma contratação de emergência ou não no seu hospital e talvez não tenha tempo de conseguir o melhor preço do mercado", exemplifica a professora da FGV.

Para a professora, a nova norma não seria capaz de proteger o governo de Jair Bolsonaro na hipótese, por exemplo, de o Ministério da Saúde tomar medidas que contrariem pesquisas científicas. Há relatos na imprensa de que o presidente tem pressionado o ministério a orientar o amplo uso de cloroquina no tratamento de coronavírus, mesmo que os estudos não tenham comprovado a eficácia do medicamento.



"Se o Ministério da Saúde baixar uma recomendação ou determinação que não esteja baseada em estudos clínicos comprovados, não me parece que o contexto de incerteza das medidas adotadas na pandemia vai poder servir de escudo para a não responsabilização", afirmou.

Apesar de não ver risco na nova MP no sentido de proteger indevidamente agentes públicos, Sampaio considera que a norma é "desnecessária" e acaba gerando contestação devido ao momento político.

"Novas normas que vêm dizer a mesma coisa que outras já existentes podem trazer insegurança jurídica justamente porque as pessoas começam a tentar encontrar a razão de expedir uma nova norma", nota ela.

Procurador aponta "descalabro" na aplicação dos recursos contra pandemia

O procurador Marinus Marsico, do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), disse à BBC News Brasil que "nada mudará" no seu trabalho caso a medida provisória seja aprovada pelo Congresso.



Segundo o procurador, está ocorrendo um "descalabro" em mau uso de recursos públicos durante a pandemia, quando aquisições foram liberadas sem licitação, mas ele diz que é possível punir os agentes públicos porque são decisões que se enquadram em "erro grosseiro".

"Eu nunca responsabilizaria alguém, nem acho que qualquer gestor deva ser responsabilizado, por estar no meio de uma pandemia e ter que tomar uma decisão que se reveste de caráter de urgência. Mas o que eu tenho observado é que estão ocorrendo gastos absolutamente despropositados", disse à BBC News Brasil.

Nesta semana, Marinus Marsico abriu uma investigação sobre um contrato de R$ 144 milhões entre o Ministério da Saúde e uma empresa de assistência hospitalar para os serviços de aconselhamento, informações, monitoramento e triagem de casos suspeitos da covid-19 por atendimento telefônico.



Segundo a representação movida pelo MP-TCU, há indícios de superfaturamento no contrato, já que o custo por cada atendimento estava previsto em R$ 5,80 inicialmente, mas, ao longo do processo, subiu para R$ 21.

Para o procurador, esse caso, por exemplo, representa erro grosseiro porque não teria havido sequer uma pesquisa rápida para comparar preços de fornecedores.

"Quando num processo você vai procurar uma empresa para fazer um serviço de telemedicina, mesmo com a dispensa de licitação, você é obrigado a procurar opções, fazer uma minipesquisa. O gestor diz que simplesmente não conhece nenhuma empresa e que o sistema (para comparação) de preços do Ministério da Economia estava fora do ar para consulta", ressalta ele.

"Isso não é justificativa para dizer que não existe outra empresa. Se você procura é justamente porque você não conhece outras empresas. E se o sistema de consulta de preços está fora do ar, você espera voltar e faz a consulta. São erros grosseiros como esse que têm ocorrido, completamente injustificáveis", argumenta.


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