Brasileiros usando máscaras pelas ruas, hospitais sobrecarregados recebendo equipamentos às pressas, atividades culturais canceladas.
Foi há mais de cem anos, mas a pandemia da gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo entre 1918 e 1920, ainda traz lições que poderiam ser aproveitadas pelo Brasil no combate à covid-19.
Principalmente diante da postura "caótica e negacionista" do presidente Jair Bolsonaro diante da atual crise de saúde, afirma a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
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"A partir do momento em que a gripe (espanhola) se instala, a atitude do governo brasileiro, de uma maneira geral, foi muito mais propositiva do que a nossa atitude agora. Não existia o ministro da Saúde, portanto as atitudes eram centralizadas na figura do presidente. E os presidentes no Brasil acabaram se transformando em líderes nesse sentido, assim como os cientistas", afirma, em entrevista concedida à BBC News Brasil no dia 28 de abril por meio de teleconferência.
Co-autora, com a historiadora Heloisa Starling, do livro Brasil: uma biografia, Schwarcz lançou há cerca de um ano o livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, considerado a primeira reação impressa em forma de livro ao governo Bolsonaro.
De lá para cá, o presidente continuou a demonstrar uma série de atitudes autoritárias, afirma a pesquisadora.
Eleito sem participar dos debates públicos, o presidente segue até hoje governando para uma minoria, com discursos de palanque e à frente de uma equipe ministerial formada "à própria imagem e semelhança", quase que exclusivamente por homens brancos de classe média alta na faixa dos 60 anos, deixando assim de cumprir o papel da política de construir consensos na sociedade, afirma.
"O nosso presidente tem atuado com claro negacionismo, tem incitado manifestações, tem tratado com desdém os protocolos da Organização Mundial da Saúde (OMS), quando não deturpa tais protocolos, e isso vai custar muito caro, sobretudo em um país de marcada desigualdade social", diz a historiadora, que é professora da USP e global scholar em Princeton.
"Analistas já têm dito que os brasileiros terão problemas para viajar por conta da má condução da pandemia aqui no Brasil".
Na política, enquanto líderes mulheres se destacam criando uma bem-sucedida maneira "feminina e feminista" de governar na crise em países como Dinamarca, Islândia, Finlândia, Taiwan, Cingapura, Bélgica, Nova Zelândia e Alemanha, há o perigo de que a situação de emergência global favoreça o avanço do autoritarismo em governos que já seguiam essa tendência, como Estados Unidos, Israel, Itália, Hungria e Brasil.
"A pergunta é: o que a pandemia fará frente a líderes mundiais de raiz e matriz autoritária? Eu tenho muito receio".
Leia os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - A senhora acha que a crise política no Brasil atrapalha o foco na saúde?
Lilia Schwarcz - Piora muitíssimo. Escrevi um artigo no jornal Nexo em que eu chamava atenção para uma série de novas dirigentes mulheres que estão, na minha opinião, criando uma nova forma de fazer política. Eu me refiro às primeiras-ministras e presidentes de países como Dinamarca, Islândia, Finlândia, Taiwan, Cingapura, Bélgica, Nova Zelândia e Alemanha.
O que há em comum nessas mulheres? Elas foram bastante rigorosas nas medidas, ou seja, fecharam fronteiras, estão testando massivamente, o que o Brasil não está fazendo, investiram em equipamentos médicos, investiram na saúde, equipando também a população de máscaras, e sobretudo deram diretrizes muito claras, falaram com a população. Então eu penso que existe talvez uma nova maneira feminina, feminista, já que as mulheres têm esse papel estrutural do cuidado, uma nova maneira de pensar na política.
No caso brasileiro a situação é caótica. Você deve ter visto que em pesquisas internacionais o Brasil aparece como um dos piores países no que se refere à condução da pandemia.
Analistas estrangeiros já começam a dizer que, quando voltarmos à normalidade - eu acredito que não existirá normalidade depois da pandemia, existirá o que se tem falado uma espécie de novo normal -, analistas já têm dito que os brasileiros terão problemas para viajar por conta da má condução da pandemia aqui no Brasil.
O nosso presidente tem atuado com claro negacionismo, tem incitado manifestações, tem tratado com desdém os protocolos da Organização Mundial da Saúde, quando não deturpa tais protocolos, e isso vai custar muito caro, sobretudo em um país de marcada desigualdade social.
BBC News Brasil - No seu trabalho, principalmente para o livro Brasil: uma biografia, a senhora pesquisou bastante sobre a gripe espanhola. Em entrevista à BBC News Brasil, o médico Drauzio Varella, por exemplo, disse que não dá para comparar aquela pandemia com esta dos dias atuais. Mas existem lições ou comparações que dá para fazer sobre o que aconteceu com o Brasil naquela ocasião e agora?
Schwarcz - Eu acho que sim. A gripe espanhola é até hoje considerada e chamada a "mãe das pandemias". Matou de 20 a 50 milhões de pessoas e foi, de fato, uma pandemia porque afetou o mundo todo. Afetou as Américas, afetou a Europa, afetou a Ásia, os relatos falam de casos em todos os lugares. E afetou em três grandes ondas.
A primeira foi mais nos Estados Unidos, a segunda tomou a Europa e a terceira, o mundo todo. Foi uma gripe mais curta, ela começa em 1918 e em 1920 já são pouquíssimos os casos. Ela foi uma gripe que pegou a população mundial enfraquecida por conta da Primeira Guerra Mundial, que foi uma guerra muito sanguinolenta.
Encontrou soldados famintos, soldados exaustos, soldados exauridos. Então esses todos são contextos particulares da gripe espanhola.
No entanto, o que há de comum? O tipo de medida que foi adotada no combate à gripe espanhola. As pessoas usavam máscaras, os hospitais foram mais equipados, os teatros foram fechados. Os transportes públicos andavam mais esvaziados.
Enfim, essas medidas de quarentena foram tomadas em 1918 e 19, o que é muito interessante pra gente pensar.
Então, algumas lições: primeiro; as pandemias voltam, ou seja, elas vêm por ciclo. Isso faz parte da História. As pandemias vão se tornando às vezes mais violentas, ainda mais agressivas.
Outro ensinamento: é preciso aprender com as experiências dos outros países.
E é preciso aplicar essas experiências às especificidades do nosso próprio país. Isso nós não estamos fazendo.
BBC News Brasil - Na gripe espanhola o Brasil fez isso?
Schwarcz - Isso, a gripe espanhola chegou ao Brasil de navio (o navio Demerara, que veio da Europa com 72 passageiros), muito parecido com o nosso caso da covid-19, em que a doença chegou de avião. No caso da gripe espanhola de 18, o navio parou em Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos.
E ele veio contaminado, e a contaminação em um primeiro momento foi negada, os brasileiros achavam que a gripe espanhola nunca chegaria ao Brasil.
Mas a partir do momento em que a gripe se instala, a atitude do governo brasileiro, a depender do Estado, mas de uma maneira geral, foi muito mais propositiva do que a nossa atitude agora.
Não existia o ministro da Saúde, portanto as atitudes eram centralizadas na figura do presidente da República. E os presidentes no Brasil acabaram se transformando em líderes nesse sentido, assim como os cientistas. Ganharam vulto pelo combate à gripe espanhola.
A gente teria muito o que aprender. Não é igual, eu concordo com o doutor Drauzio (Varella), porque os contextos são sempre distintos, mas as lições são boas de aprender. Mas a humanidade é teimosa, né? Não aprende.
BBC News Brasil - Fora todos os problemas, vê marcas ou impactos ou lições que vão ficar? Mudanças que teremos na sociedade depois da pandemia?
Schwarcz - Quem diz que sabe, em geral... nós não sabemos o que vai acontecer. Muita gente tem feito previsões bastante otimistas, de que sairemos diferentes.
Usando o que eu conheço de História eu acho que nunca se sai de uma crise dessas da mesma maneira. Mas também não se sai tão revolucionado como se imagina.
Eu tendo a dizer que eu sou, talvez, otimista no varejo e pessimista no atacado.
BBC News Brasil - Quero saber se a senhora está mais pessimista ou mais otimista.
Schwarcz - Não estou nenhum. Eu acho que a gente está em um momento em que a gente não pode dizer o que está. Eu acho que muita gente tem falado que as relações nas casas e no lar tem se alterado, se nós pegarmos as últimas pesquisas têm mostrado o contrário: que durante a quarentena, durante o isolamento, as mulheres profissionalizadas estão sendo muito mais prejudicadas do que os homens. Então eu discordo da ideia de que estamos revolucionando as relações de gênero dentro de casa.
Também penso que as pessoas não estão parando para olhar o que é uma casa e o que é um lar em uma sociedade tão desigual como o Brasil. Nós sabemos que 30% dos brasileiros vivem em casas com seis ou mais pessoas, e muitas dessas pessoas têm o seu espaço de sociabilidade na rua, não dentro das casas, onde não é possível a convivência entre todos.
Nós também sabemos que os números de violência doméstica estão aumentando, o número de violência contra as crianças está aumentando. De novo, quando você me pergunta você é mais otimista ou mais pessimista, eu digo: não sei. Acho que existem as duas coisas.
Existe uma classe média, uma classe média alta, que pode estar refletindo mais sobre a divisão do trabalho nas casas, mas existe uma classe de baixa renda que está sofrendo demais com a impossibilidade da quarentena.
A mesma questão vale para a gente pensar nos sistemas políticos. Nós acabamos de conversar que talvez a quarentena esteja mostrando novas dirigentes, novas líderes, líderes mulheres. No entanto, a pandemia também abre uma porta grande para governos mais autoritários.
O grande modelo é o modelo da Hungria, do (Viktor) Orbán, que dá um golpe em cima do golpe. Então uma coisa é nós falarmos que estamos vivendo estados de anomalia, de emergência. Mas isso não quer dizer que esses dirigentes têm o direito de usar esse estado de anomalia para dar um novo golpe de Estado.
Então, eu tenho muito medo, eu elogio e vejo com muita alegria esses novos governos, essas novas líderes mulheres, mas vejo com muita preocupação o enrijecimento do autoritarismo. A gente não pode esquecer que a pandemia pegou o mundo em um momento de uma nova onda autoritária.
Se a gripe espanhola pegou o mundo no contexto da Primeira Guerra Mundial, e teve consequências terríveis, vamos trazer agora para o nosso contexto. A pandemia está pegando o nosso mundo em um momento de crescimento de governos autoritários, nos Estados Unidos, em Israel, na Itália, na Hungria, que já citamos, e no Brasil.
Então, a pergunta é: o que a pandemia fará frente a líderes mundiais de raiz e matriz autoritária? Eu tenho muito receio.
BBC News Brasil - Na História do Brasil, já houve momentos tão desafiadores, difíceis de colocar em uma caixinha para análise? Como você vê este momento na biografia do Brasil?
Schwarcz - A biografia do Brasil eu escrevi junto com uma grande historiadora, a Heloísa Starling, e nós, na conclusão do livro, dizemos que o Brasil em vários momentos já se encontrou e se desencontrou. Ou melhor, já viveu muitas crises, mas achou boas soluções.
Eu gosto de citar o momento de grande crise que foi o momento em que Getúlio Vargas comete suicídio. É possível dizer que o povo na rua evitou, por alguns anos, a chegada da ditadura militar. Mas era um momento de tremendo caos político, de tremendo caos econômico, e talvez semelhante ao que nós vivemos agora.
Todas as testemunhas que participam de um momento tendem a achar que o seu momento é único. Porque faz parte da ideia da testemunha. Segundo a Hannah Arendt, a testemunha é aquela que fica para contar. E a gente só pode narrar aquilo que nós experimentamos. É por isso que o passado fica sempre mais longínquo nesses momentos.
Mas talvez essa experiência não seja tão única, talvez seja hora de a gente pensar em saídas de mais longo prazo, saídas que tornem mais forte a nossa democracia, ou seja, que a gente não adie o problema mas que gente enfrente cada vez de maneira forte. Enfim, todo momento é único, mas todo momento dialoga no momento da História, não é?
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