A Argentina começou a discutir um imposto extraordinário para quem tem patrimônio declarado acima de US$ 3 milhões e planeja destinar o dinheiro arrecadado, principalmente, para a área da saúde, foco de atenção do governo do presidente Alberto Fernández em tempos de pandemia do novo coronavírus.
Segundo autores do projeto, o dinheiro arrecadado socorreria os mais pobres e iria ainda para as pequenas e médias empresas que afundaram com o agravamento da crise econômica argentina nesta era de quarentena de prevenção contra a COVID-19.
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Batizado de "imposto para os ricos", o projeto apresentado por parlamentares governistas na Câmara dos Deputados recebeu apoio explícito do presidente argentino.
"Somos 45 milhões de pessoas na Argentina e 12 mil pessoas concentram muita riqueza. É para essas pessoas que pediremos esse apoio excepcional para a situação difícil gerada pela pandemia. E será cobrado só uma vez", disse Fernández à emissora de televisão C5N, de Buenos Aires.
Em sua conta no Twitter, o presidente argentino disse que o imposto sobre grandes fortunas será "uma ferramenta útil para enfrentar a luta contra o coronavírus" e representará "a solidariedade" dos mais ricos.
Autores do projeto estimam que seriam arrecadados cerca de US$ 3 bilhões com alíquotas diferenciadas de acordo com o valor do patrimônio declarado. O percentual seria entre 2% e 3,5% do total de bens declarados, de acordo com autores da proposta. A iniciativa recebeu apoio dos governistas, mas foi criticada por setores da oposição e do empresariado.
A Argentina já completava quase dois anos de recessão, com índices altos de pobreza (cerca de 35% da população), de desemprego (em torno de 10%) e de inflação (53% em 2019), quando surgiram os primeiros casos do novo coronavírus no país.
O governo Fernández decretou a quarentena preventiva, social e obrigatória, há quase 80 dias, no dia 20 de março, colocando um freio na expansão dos casos de COVID-19, como ressaltam infectologistas que assessoram o governo. Desde então, como em outros países, a administração central intensificou a distribuição de benefícios para tentar amenizar o impacto econômico e social dos efeitos do agravamento da crise econômica.
O Ministério do Desenvolvimento Produtivo estima que em torno de 90% das casas dos argentinos recebam hoje, na era da pandemia, algum tipo de benefício, seja através de subsídios emergenciais para autônomos e desempregados, créditos sem juros e socorro do Estado ao setor privado para o pagamento dos salários dos trabalhadores. O cenário de aumento do gasto público, menor arrecadação de impostos, com o comércio e outros setores parados, pressionou o caixa do governo, concordam economistas.
Neste cenário, a base governista no Congresso Nacional espera aprovar a tributação para as grandes fortunas até agosto.
O texto foi apresentado pelo deputado Máximo Kirchner (filho da vice-presidente Cristina e líder do governo na Câmara dos Deputados), em abril, poucos depois do início da quarentena nacional, e redigido pelo presidente da Comissão de Orçamento, deputado Carlos Heller, do Partido Solidário e presidente do Banco Credicoop Cooperativo.
"Trata-se de uma ajuda extraordinária, em uma única vez e com destino determinado: a aquisição de produtos vinculados à crise sanitária, o fortalecimento da distribuição de alimentos para as pessoas de baixa renda e socorro para as pequenas e médias empresas que mais estão sofrendo com a crise. Assim, elas poderão manter os empregos que geram", disse Heller num artigo no jornal Página 12.
Para ele, a Argentina precisa "urgente" de recursos para continuar encarando os desafios gerados pela pandemia, como a atenção às populações mais vulneráveis, e o imposto, disse, "não mudará as condições de vida e a acumulação de riqueza" dos que serão alvo da tributação.
Procurado pela BBC News Brasil, ele respondeu, através de sua assessoria, que prefere falar quando o projeto estiver a caminho da votação.
'Busca cultural da igualdade social'
A economista Julia Strada, especialista em desenvolvimento econômico e diretora do Centro de Economia Política (Cepa), de Buenos Aires, disse que o projeto é "uma espécie de contribuição solidária" na pandemia.
"Acho que esse é um assunto muito importante no contexto de desigualdade social vivida na Argentina. A discussão tinha começado com setores da oposição defendendo a redução de salários da classe política. Mas acho que esse é um debate que deve envolver o poder econômico (não os salários da classe política)", disse Strada à BBC News Brasil.
Para ela, o imposto extraordinário representaria uma política pública e um possível "precedente" para que volte a ser aplicado quando o Estado passar por outra situação econômica crítica.
"Um imposto à classe política pode ser um gesto, mas não resolve e não faz parte da busca cultural sobre a redução da brecha entre ricos e pobres. A discussão deve incluir o poder econômico. O problema hoje é a desigualdade social. A classe política e o Estado estão buscando soluções para a pandemia. A política é a saída para a pandemia", opinou Strada, que integra ainda o Grupo Província, ligado ao estatal Banco Província.
Strada observou que a discussão de um imposto sobre as grandes fortunas também passou a ser realizada, nestes tempos de pandemia de COVID-19, em outros países da América do Sul, como a Bolívia. No país andino, o candidato presidencial e ex-ministro da Economia do governo de Evo Morales, Luis Arce, do Movimento ao Socialismo (MAS), propõe a criação de um "fundo solidário", a partir de um imposto sobre as grandes fortunas, que seria destinado ao setor da saúde.
No Uruguai, foi criado o Fundo Coronavírus, ideia do governo do presidente conservador Luis Lacalle que contou com apoio da opositora Frente Ampla, dos ex-presidentes José 'Pepe' Mujica e Tabaré Vázquez. O fundo reúne recursos surgidos a partir do corte no salário do setor público, incluindo políticos.
Afugentar investimentos
Na Argentina, a proposta de Máximo Kirchner, filho da ex-presidente e atual vice-presidente do país, Cristina Kirchner, que é presidente do Senado, gera controvérsia. O economista Marcelo Elizondo, especialista em negócios e em comércio exterior, entende que o projeto pode afugentar investidores em um país que já tem dificuldade em atraí-los.
"Acho que o projeto representa mais uma mensagem política do governo - de que quer distribuir renda - do que a arrecadação em si. Acho que não é um bom sinal, cria um clima negativo para as pessoas com fortuna que queiram investir na Argentina. A Argentina precisa de investimentos e durante e depois da pandemia será necessária a participação de todos os setores", disse Elizondo na entrevista.
Em seus discursos, o presidente Fernández tem ressaltado o abismo social na Argentina. "A pandemia evidenciou a desigualdade social que existe no país", disse na semana passada, agregando que Argentina é hoje um "país injusto" e defendendo abrir caminho para a igualdade.
Ao mesmo tempo, o vice-presidente da União Industrial Argentina (UIA), o empresário Daniel Funes de Rioja, criticou o projeto de taxação das grandes fortunas. "A pressão tributária já é muito alta na Argentina. A criação de mais impostos não é uma coisa boa. É preciso incentivar que sejam realizados mais investimentos e não o contrário", disse o empresário.
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