Além de questões raciais e de classe, a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, que caiu do nono andar do prédio onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica, suscita um outro debate entre especialistas na infância: o fato de, em geral, a sociedade cuidar mal das crianças que estão além de seu círculo de parentesco, e sobretudo das que estão em situação de maior vulnerabilidade social.
Ao mesmo tempo, existem múltiplas evidências internacionais de que esse descaso resulta em despesas muito maiores para toda a sociedade, com perdas de produtividade econômica e uma sobrecarga maior de gastos para o Estado.
No caso ocorrido no Recife, imagens das câmeras de segurança mostram o momento em que o Miguel, de 5 anos, entra sozinho no elevador do prédio enquanto Sari Corte Real, a patroa da mãe dele, segura a porta, depois parece apertar um botão e deixa-o sozinho. Ao descer no nono andar, as evidências apontam que o menino acabou escalando a área de ar-condicionado do edifício e caindo de uma altura de aproximadamente 35 metros.
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Sari Corte Real foi presa por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) e solta após pagamento de fiança. O delegado do caso considerou que, embora a queda do menino tenha sido acidental, "identificamos comportamento negligente (de Sari) ao permitir que a criança seguisse sozinha no elevador".
"Parece claro que a gente se preocupa pouco com as crianças, que também são nossas — da sociedade", diz à BBC News Brasil Naercio Menezes Filho, pesquisador do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper e integrante do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).
"Um exemplo é que, das 18,5 milhões de crianças de zero a seis anos do Brasil, 29% vivem em domicílios pobres", afirma ele, com renda mensal per capita média de R$ 250, segundo os dados mais recentes, do fim de 2017.
É nessa faixa etária que as crianças formam a maioria de suas conexões cerebrais, funções cognitivas e socioemocionais, que vão impactar a sua capacidade futura de aprendizagem e de produtividade econômica.
"Depois dessa fase, muitas janelas se fecham e é mais difícil (reverter os problemas)", prossegue Menezes. "Mesmo quem se preocupa com a redução do tamanho do Estado tem que defender os gastos nessa faixa etária. Para que as pessoas tenham a capacidade de conquistar seus sonhos e serem produtivas, temos de investir nelas."
"A Constituição brasileira de 1988, que diz que é dever da família, da sociedade e do Estado zelar com absoluta prioridade pela vida da criança e do adolescente, já existe há mais de uma geração. Nós temos que cuidar dos filhos dos outros também", diz Vital Didonet, ex-coordenador de Educação Infantil do Ministério da Educação e cofundador da Rede Nacional pela Primeira Infância.
"E, no entanto, temos um olhar muito fechado em nós mesmos, (...) persistindo na ideia de que pobres podem viver com pouco. O caso do Recife mostra que isso é cultural e está incrustado na sociedade."
O projeto Perry
Em âmbito internacional, um dos mais conhecidos defensores de investimentos na primeira infância é o prêmio Nobel de Economia James Heckman, que estudou os efeitos de longo prazo de um projeto americano conhecido como "Pré-escola Perry".
O projeto, realizado nos anos 1960 no Estado de Michigan, envolveu 123 crianças negras de 3 e 4 anos de idade, vivendo na pobreza e com baixa expectativa de sucesso escolar futuro. Desse grupo, 58 crianças foram colocadas em um programa de educação infantil de excelência, com professores altamente capacitados, visitação familiar e atividades que estimulantes e de resolução de problemas.
As outras 65 crianças não tiveram acesso a educação pré-escolar diferenciada.
O grupo de 123 crianças foi acompanhado até a vida adulta, e os pesquisadores notaram que as que tiveram acesso à educação infantil de excelência conseguiram, em relação ao grupo de controle, taxas maiores de conclusão dos estudos, salários mais altos e menor índice de envolvimento com criminalidade.
Com isso, houve menos gastos do Estado com essas crianças, seja em investimentos extras para mantê-las na escola, em benefícios sociais para os mais carentes e até em despesas no sistema carcerário.
A partir desse estudo, Heckman, que é diretor do Centro da Economia do Desenvolvimento Humano da Universidade de Chicago, identificou que investimentos precoces no cuidado infantil resultam em economias futuras consideráveis a governos: cada dólar investido pode resultar na economia de US$ 7 no futuro.
Ele defende investimentos nessa faixa etária mesmo em períodos de crise e deficit orçamentário, argumentando que é uma "estratégia de bom custo-benefício".
"A redução do deficit só virá de investimento mais inteligente de dinheiro público e privado. Dados mostram que uma das estratégias mais eficientes para crescimento econômico é investir no desenvolvimento de crianças pequenas em situação de risco", detalha em seu site.
Um dos centros mais importantes de pesquisas do mundo nessa área, o Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard também sustenta, em seu extenso material sobre pesquisas na infância, que "todos em uma comunidade têm interesse pessoal nos filhos de todos os demais, porque as crianças de todos os demais é que vão determinar a próxima população adulta que forma uma sociedade bem-sucedida. Negligenciar as crianças pequenas é negligenciar a base de uma geração saudável futura. A comunidade paga um preço caro por isso mais tarde com os problemas da geração seguinte, seja em sucesso educacional, produtividade econômica, boa cidadania ou a habilidade de serem pais e mães das futuras gerações."
A potência dos primeiros anos de vida se deve à plasticidade do cérebro nessa idade, explica Vital Didonet. "É o período em que o cérebro humano está mais sensível para coisas que serão importantes a vida inteira. Se o cérebro fosse uma massa de pão, esse seria o período em que a massa está mole e pode ser moldada. Para resolver nossos problemas de desigualdade, temos que começar aí, porque daí as crianças vão seguir na escola por mais tempo, se sairão melhores e até cuidarão melhor de seus filhos."
Brasil e a crise da pandemia
No Brasil, segundo dados levantados no ano passado por Naercio Menezes, do Insper, a partir da pesquisa Pnad Contínua, mais de 40% das crianças de zero a seis anos habitavam em 2017 casas com ao menos uma inadequação de saneamento, seja ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo.
Dessas casas, quase um quarto tinha ao menos uma inadequação de moradia — seja ausência de banheiro próprio, paredes de materiais não resistentes, adensamento excessivo (mais de três pessoas dividindo o mesmo dormitório) ou custos de aluguel que não cabiam no bolso da família.
Embora não haja dados atualizados sobre essa situação, especialistas dão como certo que o quadro se agravará com a crise econômica e a quarentena provocadas pela pandemia do coronavírus.
"É bastante claro que a situação atual vai ter um impacto sobre as crianças. É uma geração que pode sentir isso ao longo da vida inteira", diz Menezes. "Porque elas precisam de estímulos e interações saudáveis com pais e cuidadores para se desenvolver. E, na pandemia, temos mais pais em situação de estresse pelo confinamento em casa e pela perda de renda, e um aumento nos casos de violência doméstica."
Ele teme que isso leve a um ciclo vicioso: mais estresse e menos estímulos na primeira infância tendem a levar a mais dificuldades em concluir a escola, que resulta em mais dificuldades em sair-se bem no mercado de trabalho e menor produtividade.
Ao mesmo tempo, a reabertura da economia, já iniciada em diversas cidades e Estados do país, esbarra no fato de que escolas e creches permanecem, em geral, fechadas.
"Onde essas mães que precisam trabalhar vão deixar as crianças pequenas na ausência de creches, que são não apenas uma fonte de interação social, mas de alimentação?", questiona Menezes. Ele lembra, também, que o menino Miguel Otávio estava acompanhando a mãe no trabalho porque ela não podia deixá-lo na escola.
Neste processo de reabertura econômica, diz, "muitas mães vão ficar divididas entre tentar manter seus empregos e ter com quem deixar seus filhos".
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