Para os vídeos de despedida da escola de educação infantil Planeta Azul, a proprietária Marli Pereira escolheu fotos das crianças brincando, das festas juninas de anos anteriores, dos alunos antigos, das turmas de judô e balé, das funcionárias. Enquanto selecionava as fotografias, não conseguia parar de chorar.
Pereira ainda usa o tempo presente para falar sobre a escola em Pinheiros (zona oeste de São Paulo) porque "a ficha não caiu" de que, em meio à grande evasão de alunos durante a pandemia, ela terá que fechar as portas da Planeta Azul a partir de julho, depois de mais de três décadas de trabalho ali."Entrei em 1987 ainda como funcionária e, em 2003, fiquei alucinada por comprar a escola quando a dona anterior quis vender", conta à BBC News Brasil. "Tinha na época apenas 13 alunos, sendo que cinco deles estavam se formando. Com o tempo, cheguei a ter 152 alunos. Meus filhos nasceram e cresceram lá. É um caso de amor. A Planeta Azul me deu os 33 melhores anos da minha vida."
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Até poucos meses atrás, fechar as portas sequer passava pela sua cabeça. Uma quantidade significativa de alunos havia sido perdida na virada para 2020; mas, com muitas visitas de pais, Pereira previa que — a exemplo de anos anteriores — as coisas retomassem seu rumo depois do Carnaval.
Não foi o que aconteceu. Assim como nas demais escolas do país, a pandemia do novo coronavírus forçou Pereira a trocar as aulas presenciais por sessões remotas. "Mas o meu ponto forte é a faixa etária de zero a 3 anos, e os pais me dizem 'as aulas online não estão servindo. Vou tirar meu filho da escola e coloco de novo quando as aulas retornarem'."
Na Planeta Azul, porém, elas não irão retornar. Pereira conseguiu renegociar seu aluguel, mas a perda de mais da metade dos alunos e os descontos nas mensalidades dos que permaneceram fizeram a diretora perceber que, quando chegasse setembro, não conseguiria mais pagar suas 12 funcionárias fixas e cinco adicionais.
"Usei o dinheiro que eu tinha guardado para demiti-las. Algumas tinham mais de 30 anos de casa. Queria tudo menos fechar, porque não sei o que vou fazer da minha vida sem o Planeta."
Escolas de educação infantil (as que abrigam crianças de zero a seis anos) de pequeno ou médio porte como a de Marli Pereira estão entre as que mais despertam a preocupação nas pesquisas conduzidas pelo professor Tadeu da Ponte, do Insper, com instituições de ensino privado.
Desde o início da pandemia e da suspensão das aulas presenciais, ele é coautor de uma pesquisa para acompanhar a situação financeira de 450 a 500 estabelecimentos de ensino privado do Brasil.
Em média, as escolas de todos os segmentos entrevistadas até maio perderam 52% de suas receitas. Na educação infantil, esse índice é ainda maior: 56%.
A Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) diz temer que 80% das instituições privadas de educação infantil sejam forçadas a fechar as portas em definitivo por causa da evasão causada pela pandemia.
Situação financeira precária
"As [escolas] de educação infantil são as que estão em situação mais precária, por vários pontos", diz Ponte à BBC News Brasil.
"Primeiro, porque até quatro anos não é obrigatório que as crianças estejam matriculadas em uma escola. Mesmo com crianças de 4 a 6 anos, é pouco verossímil que um juiz mande prender um pai durante a pandemia se seu filho não estiver matriculado. Depois, é uma faixa etária mais difícil de se realizar o ensino online, porque as crianças não têm autonomia sem a mediação dos adultos. E, a essa altura, com três meses de pandemia, os pais já deram um jeito de cuidar das crianças em casa, seja como for. O serviço da educação infantil se tornou muito difícil de usufruir, e em um momento de perda de receita das famílias."
Ponte afirma ainda que toda a receita com serviços extras prestados pela escola — que incluem horas de recreação a aulas de esportes — foi totalmente eliminada durante a pandemia. E esse dinheiro representava, segundo o pesquisador, quase a metade da receita de muitos desses estabelecimentos voltados às crianças pequenas.
Além disso, diz o professor, "geralmente essas são as escolas de bairro, que são o sonho de uma pedagoga apaixonada por crianças, que começam pequeno e crescem, trabalham duro", mas muitas vezes sem conseguir fazer um colchão de reservas financeiras que dure muito tempo. "Escolas maiores costumam ter mais recursos e mais capacidade para realocar sua equipe."
Pais desempregados
No Maranhão, a pedagoga Christiane Teixeira Mendes tem enfrentado a tristeza a cada notícia de aluno que não voltará a sua escola quando a pandemia passar. Ela dirige a escola de educação Infantil Porta de Papel, fundada pela própria pedagoga para as crianças de 2 a 5 anos do bairro de Coroadinho, que reúne favelas e comunidades com população estimada entre 59 mil e 100 mil habitantes na capital São Luís. Nas últimas semanas, a professora diz que tem mandado mensagens para melhorar o ânimo dos alunos.
"A gente já mandou áudio, videozinho falando que vai ficar com saudades. E eles mesmo mandam para a gente também", diz.
Desde que a pandemia começou, o número de alunos da educação infantil caiu de 30 e poucos para 20 na Porta de Papel, e a pedagoga demitiu três de suas seis funcionárias, entre pedagogas e estudantes de pedagogia.
"Os pais já estão falando com as crianças, e algumas já estão cientes de que não vão voltar neste ano. Tive famílias em que ficaram desempregados o pai e a mãe, e nem conseguiram o auxílio (emergencial do governo), ficaram totalmente desassistidos". "A maioria dos alunos são filhos dos trabalhadores das feiras da região de Coroadinho, comerciantes, profissionais autônomos. Crianças que tinham mais de um irmão, de famílias grandes, crianças que moravam em uma casa com 11, 12 pessoas", diz.
Christiane tem liderado as campanhas de arrecadação de doações para a favela, e muitas famílias dos alunos da Associação Núcleo de Educação Comunitária têm contado com a ajuda da professora para se alimentar. Projetos ligados ao G-10 das Favelas (grupo de líderes comunitários e empreendedores de impacto social) são o que tem evitado, inclusive, que a escola feche as portas definitivamente.
"Foi uma comoção", conta a professora sobre a última semana de maio, quando muitos pais receberam a notícia de que estavam desempregados e comunicaram à escola que não poderiam mais pagar os R$ 80 de mensalidade. "Foi muito triste, porque foi praticamente na mesma semana em que fecharam muitas lojas, restaurantes, hotéis, então muitos pais que trabalhavam nessas áreas já foram comunicados da demissão. E daí vieram só para abraçar a gente, querer um colo", lamenta.
Sem a rotina e os cuidados da escolinha, muitas das crianças voltarão para a realidade que Christiane justamente tentou combater quando fundou a Porta de Papel; rotina que ela mesmo viveu de perto quando criança que crescia em Coroadinho enquanto a mãe trabalhava.
"Geralmente as crianças ficam trancadas em casa e um vizinho dá uma olhada de vez em quando. Acontecia isso comigo quando eu era criança e minha mãe precisava trabalhar. A gente fica em casa trancadinho e daí sempre tem um vizinho que dá um OK, que dá uma ajuda para perguntar se a gente já almoçou, já lanchou. E tem a situação que é extrema, em que o pai sai para trabalhar e deixa a criança brincando", lembra.
O cenário de demissões já começa a se concretizar em outros Estados. Em Londrina, no Paraná, o Sindicato dos Professores (Sinpro-Londrina) foi acionado depois que um colégio da cidade anunciou, no dia 15 de junho, a demissão de todos os 20 professores e o encerramento das atividades de educação infantil. Em Belo Horizonte, no começo de junho, nove escolas particulares de educação infantil já comunicaram o encerramento de suas atividades à Secretaria Municipal de Educação, de acordo com o portal G1. De acordo com o Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep), a média de cancelamento de contratos no Estado está entre 30% e 40%.
Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, voltada à primeira infância, destaca que ainda é cedo para avaliar que impacto a suspensão das atividades de educação infantil terá sobre o desenvolvimento das crianças — por tratar-se de uma situação inédita. Mas o que já se sabe é que a ausência das creches e escolinhas será mais sentida pelas crianças que moram em lares com maior vulnerabilidade social, que durante a pandemia podem estar submetidas a situações de insegurança alimentar e outras dificuldades.
"A pandemia trouxe uma situação de fragilização e mais vulnerabilidade a muitas famílias. Muitas crianças recebiam, inclusive, suas principais alimentações do dia das escolas de educação infantil", diz ela.
"O que a gente pode dizer com certeza é que crianças que estão em lares que estejam, recebendo afeto, carinho, atenção, estímulos adequados, essas crianças vão continuar a se desenvolver bem. Ao passo que talvez crianças que estejam em famílias que não possam estimular o seu desenvolvimento talvez tenham algum prejuízo", diz, citando, por exemplo, a falta de livros e brinquedos, ou um estresse tão grande dos pais em garantir a sobrevivência da família que não possam dar atenção direcionada às crianças. "A gente acaba tendo o aumento dessa desigualdade social no nosso país."
Empregos ameaçados
Em São Paulo, o sindicato que representa os professores da educação privada no Estado (Sinpro-SP) explica que, embora ainda não haja um quadro claro sobre a quantidade de demissões de professores na crise, é na educação infantil que está a maior parte de pedidos para a suspensão de contratos de trabalho — modalidade prevista na Medida Provisória 936, em vigor desde abril por conta da pandemia e que permite que se suspendam por até 60 dias os contratos trabalhistas, sem que haja pagamento de salário por parte do empregador.
"Pode ser que em muitas escolas o processo de demissão esteja sendo retardado por essa possibilidade de suspensão", explica Silvia Celeste Bárbara, primeira-secretária do Sinpro-SP.
Mas, caso se concretize o fechamento de uma grande quantidade de turmas ou de escolas, as perspectivas de desemprego são bastante preocupantes, diz Tadeu da Ponte, do Insper.
Considerando-se um universo (segundo o Censo Escolar 2019) de 556 mil professores na educação privada, fazendo uma conta conservadora de fechamento de 20% das turmas dessas escolas, "se 20% dos professores da educação básica privada perderem o emprego, são mais de 100 mil pessoas", afirma.
Ponte é parte de uma iniciativa chamada União Pelas Escolas, que está elaborando projetos de contingenciamento para o setor de educação privada — uma das ideias em gestação é a de se propor um voucher, semelhante ao auxílio emergencial sendo concedido pelo governo, para garantir que famílias consigam pagar as mensalidades de suas escolas. A proposta, porém, está em discussão para ser formalizada. Outra demanda é pela criação de políticas de crédito do governo voltado às escolas de pequeno e médio porte.
"O risco é que, se a escola fecha, o aluno não tem para onde voltar" quando as aulas presenciais forem retomadas, diz Ponte.
Ao mesmo tempo, em São Paulo, alguns grupos têm defendido a volta do ensino privado antes do ensino público — previsto para iniciar sua reabertura a partir de 8 de setembro, segundo o plano anunciado pelo governador João Doria.
Esses grupos defendem que muitas escolas privadas já têm protocolos de higiene prontos para voltar a receber os alunos, mas críticos afirmam que o retorno do ensino particular antes do público pode aprofundar ainda mais as desigualdades entre os dois setores.
Imprevisibilidade na educação pública
Para a presidente do conselho do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Anna Helena Altenfelder, um dos grandes riscos que o fechamento de escolas de educação infantil pode causar é um inchaço das escolas e creches públicas, sem que haja capacidade de financiamento.
Na distribuição dos recursos do Fundeb, fundo estatal de educação básica que financia grande parte da educação pública brasileira, são consideradas as matrículas nas escolas públicas e conveniadas apuradas no último Censo Escolar, que retratam um período anterior à pandemia.
"Então essas crianças não estão contadas. As escolas vão ter que se adaptar a alunos novos que vêm de outra escola. O financiamento agora é uma preocupação séria. A gente fala tanto em colapso no sistema de saúde, mas corremos o corre o risco de ter um colapso no sistema de ensino".
Visão parecida tem o presidente nacional da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Martins Garcia.
"O grande problema que se coloca é a imprevisibilidade. É um aluno que chega e a gente não tem previsão de receber por ele", diz Garcia, que acrescenta que os alunos podem se matricular na rede pública a qualquer momento do ano. "A rede pública não pode se recusar a fazer matrícula".
Garcia, no entanto, defende que, especialmente na educação infantil, em que as atividades em sala envolvem engatinhar, dividir brinquedos e comida e ficar no colo das professoras, a volta ocorra provavelmente só no ano que vem, quando as condições sanitárias estiverem mais seguras, de preferência com uma vacina contra o novo coronavírus.
"A educação infantil é feita por meio de brincadeiras e interações, o que praticamente impossibilita (o distanciamento social)", diz. Há outras questões, alerta o presidente da Undime, sobre as quais as redes começam agora a se debruçar para buscar soluções. "Máscaras em crianças causam o risco de asfixia, as crianças muito pequenas (ficam) o tempo todo um encostando umas nas outras, você não tem carteiras na sala de aula de educação infantil, não tem isolamento", diz.
"O retorno às aulas na educação infantil é ainda mais complicado (que nas demais etapas de ensino) e vai exigir muita criatividade, discussão, reflexão. Achamos que deve ser a última área a retornar (às aulas presenciais). Se a gente pensar, sobretudo (na faixa etária) de zero a 1 ano, o ideal é voltar só quando houver vacina. Talvez a gente não tenha condição de retorno neste ano".
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