Mais de 250 quilômetros separam duas regiões pobres de São Paulo: o Vale do Ribeira, ao sul do Estado, e a Vila Brasilândia, na zona norte da capital, uma das áreas mais atingidas pelo novo coronavírus. Mas, nas últimas semanas, uma rede de doação de alimentos conectou os dois territórios.
Tudo começou com a pandemia de covid-19. Com o isolamento social, a maior parte da produção agrícola de 16 comunidades quilombolas do Vale do Ribeira corria o risco de estragar.
Antes da quarentena, mais de 95% dos alimentos eram vendidos a municípios do entorno por meio de um programa de compra de merenda para escolas públicas.
Esses produtos, cultivados em pequena escala na roça, representam boa parte da renda dos quilombolas da região. As comunidades ficam em áreas isoladas e, em boa parte, são cobertas pela mata atlântica remanescente.
"Com a quarentena, as escolas fecharam e as cidades deixaram de comprar os produtos. Eles ficam acumulados, e a gente iria perder tudo", explica Rosana de Almeida, diretora financeira da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale).
Então, o que fazer com toneladas de mais de 20 tipos de alimentos, como banana, arroz, feijão, inhame, cará, abóbora, batata, laranja, tomate e rapadura?
"A interrupção unilateral da compra pelas cidades gerou muita apreensão e insegurança. Além da produção que poderia se perder, as pessoas precisavam de renda para sobreviver", diz Maurício Biesek, agrônomo e assessor técnico do Instituto Sócioambiental (ISA), ONG que há anos atua com quilombolas da região.
Foi então que surgiu a ideia de comprar os alimentos e doá-los a comunidades pobres do Estado atingidas pela covid-19. Mas retirar 14 toneladas de alimentos de áreas isoladas não é tarefa fácil nem barata.
Junto ao ISA, formou-se uma espécie de consórcio de doação com outras duas entidades não-governamentais: os institutos Linha D'Água e Brasil a Gosto. Elas criaram uma campanha de arrecadação de recursos com o apoio da loja de departamento Magazine Luiza, e de organizações internacionais, como a União Europeia e a Good Energies.
O dinheiro arrecadado por meio de uma vaquinha virtual serviu para comprar a produção e pagar o transporte da mercadoria até a capital.
Caiçaras da Ilha do Cardoso
Antes das doações começarem, outras comunidades tradicionais do Vale do Ribeira decidiram participar do projeto: povoados caiçaras da Ilha do Cardoso, uma reserva de mata atlântica de 13,5 mil hectares, na divisa de São Paulo com o Paraná.
Os caiçaras são descendentes de índios, de portugueses que chegaram ao Brasil a partir do século 16 e, em alguns casos, de negros trazidos ao país como escravizados. Por viverem em áreas isoladas no litoral do Sudeste e do Sul, acabaram preservando muito da cultura de seus antepassados.
Na Ilha do Cardoso vivem sete comunidades caiçaras e uma indígena, que se sustentam basicamente da pesca e do turismo ambiental promovido por escolas particulares.
"Quando começou a pandemia, ficamos agoniados de não conseguir trabalhar. Já tínhamos várias vistas de escolas agendadas e tudo foi cancelado", diz a cientista social Tatiana Cardoso, de 37 anos, uma das moradoras da Enseada da Baleia, povoado da ilha onde vivem 32 pessoas (todos da mesma família).
Tatiana percebeu que os pequenos pescadores do local tinham parado de trabalhar, porque estavam somando prejuízos na pandemia. "Como as vendas diminuíram, não valia mais a pena para um pescador levar uma quantidade pequena para o continente, porque ele gastava mais com combustível do que iria receber com o peixe", explica.
Tatiana ficou sabendo do projeto dos quilombolas e decidiu participar. Hoje, 43 famílias da Ilha do Cardoso fornecem peixe para o sistema de doação — para isso, as comunidades decidiram produzir o peixe seco, bem menos perecível do que o fresco.
O produto foi comprado pelo "consórcio de doação", gerando renda aos caiçaras que estavam parados por causa da pandemia. Depois, foi enviado ao continente e transportado para comunidades pobres da capital.
Do Vale do Ribeira à Brasilândia
O Vale do Ribeira, que tem 22 municípios e uma população de 340 mil pessoas, é considerada a região mais pobre e vulnerável do Estado de São Paulo.
Segundo o governo estadual, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita da área é de R$ 24,6 mil — o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) médio é de 0,711. Como comparação, na capital o PIB por pessoa é de R$ 57,7 mil, e o IDH, de 0,805.
Um dos municípios do Vale do Ribeira é Eldorado, onde o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) viveu dos 11 aos 18 anos.
É em Eldorado onde as doações de alimentos das comunidades tradicionais, quilombolas e caiçaras, são reunidas para serem levadas a bairros pobres da capital.
A primeira leva abasteceu aldeias indígenas e vilas pobres do Vale do Ribeira, além do bairro do Capão Redondo, zona sul paulistana, onde 150 famílias receberam cestas com os produtos.
Já no último dia 20, cerca de 10 toneladas de alimentos chegaram à Vila Brasilândia, uma das maiores comunidades da capital. Até aquele dia, 20 de junho, o bairro havia registrado 277 mortes por covid-19, o segundo pior número entre os 96 distritos de São Paulo, perdendo apenas para Sapopemba (com 300 óbitos).
Ao todo, 930 famílias da Brasilândia receberam uma cesta de 10 quilos cada. Havia verduras, legumes, frutas e doces tradicionais.
"Os moradores estão precisando muito de doações, porque muita gente aqui perdeu o emprego na pandemia e não tem como se sustentar", diz Rodrigo Olegário, de 42 anos, líder comunitário do bairro e um dos responsáveis por distribuir as cestas.
"Até hoje a população está agradecendo, porque agora tem o que cozinhar em casa. E isso sem contar a questão afetiva, porque os moradores sabem que essas cestas vieram de pessoas como nós, pobres, negras e trabalhadoras", explica.
Para Rosana de Almeida, moradora do quilombo Nhunguara, a doação uniu duas demandas. "Foi ótimo porque, além de vender nossa produção, os alimentos foram entregues a famílias que precisam", diz, por telefone.
Já Tatiana Cardoso, do povoado caiçara Enseada da Baleia, explica que a solidariedade "deu sentido à pesca" dos moradores da Ilha do Cardoso. "Estamos isolados em uma ilha, mas vemos pela televisão o sofrimento das pessoas com a pandemia. Não estamos alheios a isso. Então, enche o nosso gás saber que estamos trabalhando para pessoas que são como nós e que estão em dificuldade", afirma.
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