O governo dos Estados Unidos comprou praticamente todo o estoque mundial do remédio remdesivir para os próximos três meses. Produzida pelo laboratório Gilead, a droga pode abreviar a duração dos sintomas de covid-19 e é a primeira a ser aprovada por autoridades americanas para ser usada no tratamento contra a doença (que não seja em caráter experimental).
Um comunicado do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA afirmou que o presidente americano, Donald Trump, obteve um acordo "incrível" com a Gilead pelos 500 mil ciclos de tratamentos, que representam 100% da produção da farmacêutica em julho, 90% em agosto e 90% em setembro.
Embora o remdesivir possa ajudar na recuperação e possivelmente impedir que as pessoas sejam tratadas em terapia intensiva, os estudos até agora não deram nenhuma indicação clara sobre se ele pode impedir a morte por coronavírus. Acredita-se que antivirais — como o remdesivir — sejam mais eficazes nos estágios iniciais da doença, mas que, para os casos em que a doença está mais avançada, os medicamentos mais adequados seriam os imunológicos.
Um tratamento à base de remdesivir utiliza seis doses, em média, e custará oficialmente quase US$ 3.200 (cerca de R$ 17 mil).
Tanto o anúncio de Trump sobre a aquisição massiva quanto o anúncio da Gilead sobre o preço do medicamento despertaram críticas ao redor do mundo.
Para Peter Horby, professor da Universidade de Oxford, no Reino Unido, era mais ou menos esperado que isso ocorresse porque a fabricante Gilead é uma empresa comercial americana submetida a pressões políticas locais.
Horby relembra que os testes que habilitaram o remdesivir como tratamento contra a covid-19 incluíram pacientes de diversos outros países, a exemplo do Reino Unido. A situação, para ele, já suscita debate sobre como seria no caso da eventual descoberta de uma vacina.
“Companhias privadas são construídas para se comportar dessa maneira e precisamos de um arcabouço sólido se vamos desenvolver essas coisas que serão usadas em emergências nacionais.”
O preço do medicamento também despertou críticas; um estudo recente apontou que o custo de fabricação do remdesivir não passa de US$ 6 (cerca de R$ 33) por um ciclo completo de tratamento.
O que o governo americano acertou com a Gilead?
Em comunicado divulgado na segunda-feira (29), o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos anunciou que o país havia garantido enormes suprimentos de remdesivir até setembro.
“Na medida do possível, queremos garantir que qualquer paciente americano que precise de remdesivir possa obtê-lo. A gestão Trump está fazendo todo o possível para aprender mais sobre tratamentos para a covid-19 que salvam vidas e garantir ao povo americano o acesso a essas opções”, afirmou Alex Azar, secretário de saúde (cargo equivalente ao de ministro no Brasil).
Segundo a pasta, o medicamento será distribuído a hospitais a partir da regulação das pastas de saúde estaduais e federal, mesmo critério adotado para a distribuição de 120 mil tratamentos da mesma droga durante a fase experimental.
O preço pago pelos pacientes não poderá superar os quase US$ 3.200 estipulados pela Gilead e as entregas serão feitas a cada duas semanas aos hospitais. Nos EUA, não existe um sistema de saúde universal gratuita; os custos são arcados por pacientes ou planos de saúde.
O que dizem os estudos sobre o remdesivir?
Criado inicialmente para combater o ebola, o antiviral é uma aposta importante nos Estados Unidos, de onde saiu um dos principais estudos recentes sobre o medicamento.
Era do remdesivir que o médico Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid, na sigla em inglês) e um dos nomes mais importantes no combate ao coronavírus no país, estava falando no final de abril quando disse que testes realizados pelo órgão mostraram um efeito "certeiro" para tratar a covid-19.
O estudo em questão é do tipo RCT e envolveu 1.063 pacientes com quadro moderado a crítico em diferentes países.
Após a publicação do estudo, um editorial do New England Journal of Medicine classificou os resultados como "relativamente modestos". O principal deles foi uma diminuição no tempo para recuperação dos doentes, de 11 dias entre aqueles que receberam o remdesivir na veia e 15 o placebo. Também foi constatado menor percentual de mortalidade entre aqueles que receberam o remdesivir (7,1%) do que os que tomaram o placebo (11,9%), mas essa diferença não é considerada estatisticamente relevante.
Efeitos colaterais sérios foram observados em 27% dos que tomaram o placebo e 21% no grupo do remdesivir — neste, os efeitos mais comuns foram anemia e insuficiência renal. Mas em ambos os grupos, nenhuma morte foi ligada aos tratamentos.
"Nossos resultados preliminares dão suporte ao uso do remdesivir em pacientes hospitalizados com covid-19 e que precisam de suplemento de oxigênio. No entanto, considerando a alta mortalidade apesar do uso do remdesivir, é evidente que um tratamento apenas com um antiviral não é suficiente", conclui o artigo, sugerindo associação com outros antivirais ou tipos de medicamentos.
O remdesivir inibe a replicação de vírus, como foi observado antes em testes com animais para a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers). In vitro, com células cultivadas em laboratório, o medicamento também mostrou boa atividade contra o coronavírus que causa a covid-19 — mas isso precisa, para todo tratamento, ser ratificado em testes com pacientes.
Pesquisadores chineses publicaram em abril um artigo no periódico Lancet concluindo que o "remdesivir não se mostrou associado a benefícios clínicos estatisticamente significativos" em tempo de recuperação ou mortalidade na comparação com um placebo.
O estudo, também do tipo RCT, envolveu 237 adultos internados em estado grave por covid-19 em hospitais de Wuhan, cidade chinesa origem da covid-19. Mas este experimento acabou sendo limitado por medidas de isolamento, que atrapalharam o recrutamento de pacientes — o que os próprios autores reconhecem como um fator que pode ter influenciado nos resultados.
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